SÃO PAULO - Depois que a esquerda se rendeu à economia de mercado, ficou meio perdidona. Acabou buscando refúgio nas chamadas políticas identitárias, pelas quais busca emancipar minorias oprimidas e eventualmente compensá-las por injustiças históricas. Saíram a mais-valia e a socialização dos meios de produção e entraram a agenda LGBT e as ações afirmativas, num movimento que não raro propugna por leis que, a pretexto de preservar a autoimagem desses grupos, cerceiam o direito à palavra de outros.

Não discordo de que ainda haja muito a avançar no campo da igualdade de direitos, mas lamento o fato de que, nesse processo, várias correntes da esquerda abandonaram a defesa da liberdade de expressão, que era, desde o Iluminismo, uma de suas principais bandeiras.

Como as facções mais à direita que tradicionalmente se opunham à isegoria continuam a fazê-lo, ao menos quando se trata de proteger valores que lhes são caros como pátria, família e religião, a defesa da liberdade de expressão acabou ficando meio órfã.

É com prazer, assim, que constato que o STJ acaba de dar um modesto mas relevante passo para reforçá-la, ao declarar que o crime de desacato à autoridade é incompatível com a Convenção Americana de Direitos Humanos, devendo ser repelido de nosso ordenamento jurídico.

Não é só o desacato. Tratamento semelhante teria de ser dado às leis de apologia do crime, de difamação de religiões e a alguns aspectos dos delitos contra a honra, como pede a Organização dos Estados Americanos, que não chega a ser um grupo revolucionário, em seguidos relatórios publicados desde os anos 90.

Embora a esquerda pareça hoje não gostar da liberdade de expressão, esta continua sendo, institucionalmente, uma das mais poderosas forças de transformação social, ao permitir que todas as ideias e opiniões sejam a todo instante rediscutidas e reierarquizadas.

hélio schwartsman

É bacharel em filosofia, publicou 'Pensando Bem...' (Editora Contexto) em 2016.
Escreve às terças, quartas, sextas, sábados e domingos.

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