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    Hélio Schwartsman

    Medicina heroica

    28/01/2017 02h00

    SÃO PAULO - Atul Gawande é uma das principais vozes que tentam reintroduzir o bom senso nas práticas médicas. Seus livros e artigos, que combinam informação precisa, histórias cativantes e toques autobiográficos, nunca decepcionam. Sua mais recente peça para a "New Yorker", intitulada "O heroísmo do cuidado incremental", não é exceção.

    Como meu espaço é diminuto, não vou nem tentar dar um gostinho dos muitos casos que o autor descreve no texto, mostrando quão valiosas são as pequenas melhorias que médicos clínicos conseguem introduzir num tratamento e o grande impacto que elas, somadas, podem ter para a qualidade de vida dos pacientes.

    A tese central de Gawande é a de que o sucesso da medicina pós-Guerra, com antibióticos salvadores, vacinas redentoras e cirurgias miraculosas, fez com que víssemos a arte hipocrática como uma atividade heroica e construíssemos o sistema de saúde segundo essa lógica. Nos EUA, cardiologistas que fazem procedimentos invasivos ganham o dobro de colegas que se dedicam à prevenção. A diferença salarial também aparece entre especialidades mais intervencionistas (ortopedia, cardiologia) e as mais incrementacionalistas (pediatria, medicina da família).

    O problema com o modelo heroico é que ele está errado. Embora existam doenças que podem ser curadas com algumas pílulas ou uma operação, muitas outras exigem tratamentos que duram anos e podem no máximo ser controladas, não curadas. E, quanto mais sucesso tivermos com as moléstias do primeiro tipo, mais prevalentes serão as do segundo.

    Suspeito que essa lógica do heroísmo não está limitada à medicina. Ela ocorre em várias áreas, que incluem o futebol (atacantes ganham mais que defensores) e a política (candidatos que prometem revoluções levam vantagem). Meu diagnóstico é que somos uma espécie dada a fantasias, que deixa que fábulas e narrativas épicas se passem por realidade.

    hélio schwartsman

    É bacharel em filosofia, publicou 'Pensando Bem...' (Editora Contexto) em 2016.
    Escreve às terças, quartas, sextas, sábados e domingos.

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