• Colunistas

    Saturday, 04-May-2024 05:13:27 -03
    Igor Gielow

    Confusão nos EUA ameaça adiantar ponteiros do Relógio do Apocalipse

    15/02/2017 02h00

    Elaine Thompson - 29.jan.2017/Associated Press
    A woman shouts out as she stands in front of effigies portraying Russia's President Vladimir Putin and United States President Donald Trump at rally to oppose Trump's executive order banning travel to the United States by citizens of several countries Sunday, Jan. 29, 2017, in downtown Seattle. (AP Photo/Elaine Thompson) ORG XMIT: WAET107
    Bonecos de Putin e Trump durante protesto contra a política migratória do americano, em Seattle (EUA)

    A barafunda na qual se transformou a área de segurança do governo Donald Trump é assunto de primeira grandeza. Acostumados a um fim de mundo por semana, ao menos desde 2013, os brasileiros deveriam prestar atenção ao risco de alguma coisa sair do reino das metáforas.

    Obviamente, isso ainda é um exagero retórico, ainda que a renomada Federação de Cientistas Americanos não ache e tenha adiantado recentemente os ponteiros do notório Relógio do Apocalipse para o segundo nível mais próximo da aniquilação global desde sua criação, há 70 anos.

    Os eventos da terça (14), com a queda conselheiro de Segurança Nacional Michael Flynn e o vazamento acusando a Rússia de romper um importante tratado de controle de armas, dão tons algo dramáticos à narrativa deste começo de governo Trump.

    O problema central é definir qual a relação dele com a Rússia. Propalada como potencialmente boa, dada a empatia mútua, até aqui o que houve foram sinais trocados.

    Flynn claramente se sentiu autorizado a insinuar o fim das sanções que EUA aplicam a Moscou devido à guerra na Ucrânia, objeto das conversas com o embaixador russo que levaram à sua queda. Seria sua eletrocussão política uma tentativa de esterilizar a cadeia de comando de suas ordens?

    Ao mesmo tempo, o vazamento sobre a suposta ativação de dois batalhões de mísseis de cruzeiro pelo Kremlin proscritos caiu sob medida para jogar Trump contra a parede, obrigando uma tomada de posição mais dura. Ele vai tuitar que são "fake news"? Ou piscará?

    A dupla de secretários Rex Tillerson (Estado) e Jim Mattis (Defesa) vinha jogando no campo oposto ao de Flynn, defendendo em público as sanções. Não é possível comprar isso pelo valor de face, mas eles são vencedores no embate interno até aqui.

    É tarefa árdua ler a resultante disso nos planos russos de Trump. Seu candidato a Rasputin, o estrategista-chefe Stephen Bannon, é visto como entusiasta de uma aliança com Moscou, talvez entregando a Ucrânia no processo. Mas o faz pregando a união entre cristãos contra o que considera a ameaça muçulmana, algo que o presidente Vladimir Putin não pode aceitar por abrigar uma grande população aderente ao Islã em suas terras.

    Mas Bannon também é o sujeito que faz predições apocalípticas sobre convulsão mundial e quebra intencional de sistemas, o que não o faz exatamente o parceiro mais confiável.

    Putin é avesso a revoluções, vacinado que é pelas versões "coloridas" incentivadas pelo Ocidente nos antigos aliados sob o manto soviético. Segundo dois analistas russos ouvidos pela Folha, é cada vez maior o ceticismo no Kremlin em relação às perspectivas de vantagens na relação bilateral com os EUA sob Trump devido a essa instabilidade.

    Exceto que secretamente joguem juntos e sejam uma versão pós-verdade da Besta e do Falso Profeta, para ficar na simbologia do fim dos tempos, a desconfiança pode dominar a relação entre os dois líderes.

    Todo esse caldo vem incentivando alarmismo, em especial nos EUA. O analista conservador Robert Kagan, que rompeu com o Partido Republicano depois da escolha de Trump como candidato ano passado, escreveu recentemente artigo em que discutia abertamente o risco de uma Terceira Guerra Mundial -na qual incluía a China como adversária americana também.

    A existência de um Bannon e a atabalhoada cena de Trump debatendo num de seus restaurantes de luxo o lançamento de um míssil norte-coreano não justifica tal leitura extrema, mas deixa o observador com o pé atrás.

    Afinal de contas, apenas EUA e Rússia podem nos reduzir a pó, sendo donos de 93% dos arsenais nucleares do mundo. Mesmo um conflito convencional por procuração com algum aliado do Ocidente já serviria para trazer o caos à ordem econômica mundial.

    Anos de destruição mútua assegurada, cujo acrônimo em inglês era "louco", nos deram certeza de que nada disso era possível. Mas Putin já demonstrou audácia militar em suas ações na Geórgia, Ucrânia e Síria, um Trump sob pressão e a ameaça da ascensão de uma política contrária ao Kremlin nos EUA pode estimular novos testes.

    Igualmente, dado que a névoa domina o cenário, o americano pode reagir ao enquadramento que vem recebendo do "establishment" doméstico de forma imprevisível.

    De uma forma ou de outra, nada disso é salutar para quem torce pelo retrocesso nos ponteiros do Relógio do Apocalipse, ora estacionados nos dois minutos e meio para a fatídica meia-noite.

    igor gielow

    É repórter especial. Na Folha desde 1992, foi repórter, editor, correspondente, secretário de Redação e diretor da Sucursal de Brasília. Escreve às quartas.

    Fale com a Redação - leitor@grupofolha.com.br

    Problemas no aplicativo? - novasplataformas@grupofolha.com.br

    Publicidade

    Folha de S.Paulo 2024