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    Jaime Spitzcovsky

    Espiões e acrobacias aéreas

    23/05/2016 02h00

    Em roteiros contaminados por thrillers empoeirados da Guerra Fria, aviões militares norte-americanos, russos e chineses andaram, nas últimas semanas, se estranhando, ao fazer arriscadas acrobacias aéreas pautadas por lógica geopolítica e ao alimentar microcrises diplomáticas, com potencial para desencadear turbulências planetárias.

    Os episódios escancaram as dificuldades da Casa Branca para lidar com a China e a Rússia em busca de mais assertividade no cenário global.

    O capítulo derradeiro da saga aérea ocorreu na última terça (17). Segundo a versão dos EUA, dois caças chineses teriam chegado a apenas cerca de 15 metros de um avião norte-americano de reconhecimento que riscava espaço aéreo internacional, nas proximidades do litoral sul chinês.

    Michael Klimentyev - 10 nov. 2014/Pool/ AFP
    Vladimir Putin (Rússia), Xi Jinping (China) e sua mulher, Peng Liyuan, e Barack Obama (EUA) em 2014
    Vladimir Putin (Rússia), Xi Jinping (China) e sua mulher, Peng Liyuan, e Barack Obama (EUA) em 2014

    Pequim rebateu a versão do Pentágono, classificou a ação de seus pilotos como "correta e profissional" e exigiu o fim das incursões aéreas de Washington naquela região costeira, ponto nevrálgico de disputa entre o governo chinês e países vizinhos.

    No mês passado, entreveros alados chacoalharam o mar Báltico. Um caça russo se aproximou de uma aeronave dos EUA em "missão de rotina e em espaço aéreo internacional", nas palavras de Washington, fazendo manobras provocativas e a uma distância de meros 30 metros. Moscou admitiu a estocada, mas acusou o "intruso" de não se identificar.

    A tensão engrossou ainda mais o caldo do mar Báltico, pois dias antes o Pentágono havia acusado aviões russos de simularem um ataque a uma embarcação norte-americana, com rasantes desafiadores.

    Tempos são outros, mas enfileirar fricções aéreas remete a um dos episódios mais célebres da Guerra Fria, quando, em 1960, o Kremlin abateu um avião-espião norte-americano em pleno sobrevoo do território soviético e capturou o piloto Francis Gary Powers, devolvido numa troca de prisioneiros dois anos depois. Com atuação magistral de Tom Hanks, o recente filme "Ponte de Espiões" retratou o drama.

    Os enfrentamentos atuais não seguem mais a lógica da bipolaridade de décadas passadas, mas se apoiam no redesenho da correlação de forças entre os três gigantes. Moscou, por exemplo, usa as pontadas aéreas como demonstração de força ao que o Kremlin entende ser o avanço da hegemonia militar norte-americana rumo às suas fronteiras.

    Na quinta (19), a Otan, aliança liderada pelos EUA, formalizou convite para adesão de Montenegro, ex-integrante da Iugoslávia. Dos 28 atuais integrantes do bloco militar, 12 são da Europa Oriental, onde a sombra do Kremlin pairou pesadamente nos anos plúmbeos da Guerra Fria.

    A Rússia entende o movimento norte-americano como ameaçador, do ponto de vista geopolítico e militar. Para a Casa Branca, trata-se de consolidar hegemonia e influência em paragens da Europa Oriental.

    Na Ásia, outro embate, pois a China rejeita as iniciativas norte-americanas desenhadas para conter o aumento do peso político e militar de Pequim no continente. Enquanto isso, pilotos tiram finas entre seus aviões em áreas de alta temperatura política, onde uma manobra mal calculada pode gerar uma crise diplomática de grande monta.

    jaime spitzcovsky

    Jornalista, foi correspondente da Folha em Moscou e em Pequim. Na coluna, fala sobre relações internacionais, com atenção especial ao Oriente Médio. Escreve às segundas, a cada duas semanas.

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