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    Jaime Spitzcovsky

    No conflito israelo-palestino, herança soviética se mostra mais renitente

    10/10/2016 02h00

    O calendário já acusa: faltam cerca de dois meses para o vigésimo quinto aniversário da desintegração da URSS. São inúmeras as cicatrizes esculpidas pelo laboratório maquinado a partir do Kremlin, e, no cenário internacional, o conflito israelo-palestino desponta como um dos capítulos em que a herança soviética se mostra mais renitente.

    No auge da Guerra Fria, Moscou decidiu implementar uma estratégia de demonização de Israel, com o objetivo de, indiretamente, minar a posição de seu arqui-inimigo, os EUA, no Oriente Médio. E, ainda hoje, hipnotizam a chamada esquerda global dogmas urdidos pela máquina de propaganda soviética, responsável por deixar uma herança de leituras reducionistas da disputa entre palestinos e israelenses.

    Quando da independência de Israel, em 1948, Washington e Moscou disputaram a paternidade do primeiro reconhecimento diplomático do Estado judeu. Buscavam, nos primórdios da Guerra Fria, atrair o projeto sionista para sua área da influência. O ditador Josef Stalin recebeu efusivamente a primeira embaixadora de Israel em solo soviético, de nome Golda Meir. Mas o flerte foi se esvaindo. Ao longo dos anos 1950, com a expansão de regimes ditos socialistas em países árabes, a URSS preferiu se aproximar do campo liderado pelo Egito nasserista.

    Os EUA, mergulhados na paranoia macarthista e anticomunista, olhavam com doses de desconfiança aos primeiros governos israelenses, socialmente apoiados nos kibutzim (fazendas coletivas, em hebraico). Israel, em seus primeiros anos, encontrou então o principal aliado estratégico na França, às voltas com o levante anticolonial na Argélia insuflado também pelo nacionalismo pan-arabista do presidente egípcio Gamal Abdel Nasser.

    Depois da vitória israelense na Guerra dos Seis Dias, em 1967, o tabuleiro do Oriente Médio ficou mais claro para a lógica binária da época. Washington eliminou a desconfiança em relação aos socialistas governantes de Israel e transformou o país em seu principal aliado na região. Moscou aprofundou parcerias com Egito e Síria.

    Para o Kremlin, sabotar Israel significava enfraquecer, por tabela, Washington. As turbinas do departamento de propaganda do partido comunista da URSS foram ativadas, e o sionismo entrou na linha de tiro de petardos soviéticos.

    Moscou passou a descrever o movimento nacionalista judaico como quintessência do "chauvinismo e do racismo". Surgiu, na ofensiva ideológica, a pseudociência da "sionologia", invenção soviética para esquadrinhar governos israelenses e seus aliados, descritos pela mídia oficial como "culto de promiscuidade política".

    A URSS vendia o conflito israelo-palestino como "batalha maior entre opressores e oprimidos".

    Motes propagandísticos repetidos à exaustão viraram cânones para a esquerda dogmática, incluindo setores que se dizem contrários ao modelo soviético

    A Guerra Fria e a União Soviética se dissolveram. Sobrevivem, no entanto, visões turvas e maniqueístas sobre o conflito israelo-palestino apoiadas em mitos desenhados, décadas atrás, em corredores sombrios do Kremlin.

    jaime spitzcovsky

    Jornalista, foi correspondente da Folha em Moscou e em Pequim. Na coluna, fala sobre relações internacionais, com atenção especial ao Oriente Médio. Escreve às segundas, a cada duas semanas.

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