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    Jaime Spitzcovsky

    O general e a memória do Holocausto

    30/01/2017 02h00

    O general soviético Vassily Petrenko, condecoração Ordem de Lênin espetada na farda, caminhava lentamente por uma rua de Jerusalém. Corria o ano de 1992, e ele havia desembarcado em Israel para participar de cerimônia em homenagem às vítimas do Holocausto.

    Em meio à caminhada, Petrenko avistou um homem de idade avançada, andar lento, se aproximar. Envergava o uniforme do Exército Vermelho. O combatente aposentado, diante do visitante soviético, bateu continência e disparou, em russo: "Coronel Petrenko, soldado Nahum Wainberg, da 107° Divisão, se apresentando".

    Quase cinquenta anos depois, o reencontro de dois participantes da libertação do campo de extermínio de Auschwitz, ocorrida a 27 de janeiro de 1945. Petrenko foi um dos comandantes da ofensiva, em solo polonês, contra o infame palco da engrenagem mortífera nazista, responsável pelo extermínio de cerca de 1,1 milhão de pessoas, dos quais mais de 90% eram judeus.

    Lembrei-me de Petrenko na última sexta (27), Dia Internacional em Memória das Vítimas do Holocausto, data instituída pela ONU. Conheci o general quando morava em Moscou, nos anos 1990, como correspondente da Folha, e construímos amizade sólida. Ele morreu na capital russa, em 2003, aos 91 anos.

    Depois da primeira entrevista, passei a visitá-lo com certa frequência. Ouvia, com desvelo, histórias da Segunda Guerra Mundial e reflexões sobre os dias turbulentos da desintegração do império soviético.

    O endereço de Petrenko transbordava simbolismo: praça da Vitória, 1. Nas redondezas, viviam militares aposentados do Exército Vermelho, e meu anfitrião se destacava entre os vizinhos pela invejável forma física. À época, contabilizava 80 anos e revelava sua fórmula para manter-se saudável. "Um casamento de 55 anos!", dizia.

    Vassily Petrenko transformou-se num dos mais jovens comandantes do Exército Vermelho na Segunda Guerra Mundial. "Vi muita gente enforcada e queimada", relatou, em uma de suas entrevistas à mídia internacional. "Mas ainda assim não estava preparado para Auschwitz".

    Memórias dos dias sangrentos da guerra reservam espaço especial para dois colegas. Petrenko fazia questão de ressaltar o papel do general Pavel Kurotchkin, comandante do 60° Exército, responsável por, em decisão própria, acelerar o avanço das tropas soviéticas rumo a Auschwitz, para estancar a matança.

    O general soviético recordava-se também de Semion Bezprozvanei. "Era um soldado judeu da minha divisão", contava. "Morreu quando tentava invadir o campo". Foi sepultado em Cracóvia, ao lado de cerca de uma centena de militares da divisão comandada por Petrenko.

    Um dos protagonistas de momento indelével da história do século 20, Petrenko demonstrava frequentemente preocupação com revisionistas empenhados em apagar as atrocidades nazistas. Combatia-os com livros, entrevistas e palestras.

    Em 1992, com o soldado Nahum Wainberg, numa calçada de Jerusalém, conversou exatamente sobre a necessidade de manutenção de tal legado, de combate ao revisionismo histórico. E, até hoje, o desafio permanece.

    jaime spitzcovsky

    Jornalista, foi correspondente da Folha em Moscou e em Pequim. Na coluna, fala sobre relações internacionais, com atenção especial ao Oriente Médio. Escreve às segundas, a cada duas semanas.

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