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    João Paulo Cuenca

    O farol do fim do mundo

    20/03/2014 03h00

    El Faro de la Mola fica na extremidade oriental da ilha de Formentera, ao sul de Ibiza, na Espanha. É um farol de 20 metros debruçado sobre um penhasco de 200. A construção de 1861 fica no bairro do Pilar de la Mola, um platô cercado por desfiladeiros e isolado do resto da ilha, com 50 casas brancas, uma igreja e um moinho. Ao redor das construções mediterrâneas, pequenos comércios, vinícolas e muita pedra.

    Passava de uma hora da manhã quanto chegamos lá pela primeira vez. A lua estava cheia, era uma noite clara de verão. Quando nosso carro ultrapassou o pequeno grupo de casas, a planície se impôs no vazio de uma longa reta até avistarmos, ao fim da estrada, o farol varrendo o escuro em fatias de luz. Era um totem com olhos incandescentes para além do abismo.

    Não por acaso, Júlio Verne inspirou-se nesse lugar para escrever "Hector Servadac" (1877), cujos protagonistas viajam pelo espaço sobre um pedaço da Terra arrancado por um cometa. Os precipícios que guardam a área plana e árida perto do farol delimitam um espaço que pode ser tanto um aeroporto para óvnis quanto a própria representação de outro planeta.

    Estávamos sós. A casa do faroleiro apagada, nenhum outro carro estacionado. Seguimos o rastro luminoso do farol até a extremidade última da ilha, um ângulo de 90 graus em pedra que despenca até onde o oceano castiga a costa em explosões de espuma. No caminho, encontramos pequenas pirâmides e arranjos improvisados com pedregulhos entre as trevas da vegetação rasteira. Obras de hippies ou moradores entediados que, naquele panorama remoto, pareciam inumanas e sinistras.

    Quando chegamos até onde não poderíamos mais andar, nenhuma cerca nos separava do fim.

    Como a vertigem é o impulso da queda, você não tem vertigem. E eu tenho. Por isso, você caminha na minha frente. Eu paro com as pernas trêmulas e te vejo avançar um pouco mais, desafiando o vazio. O mar bate lá embaixo, as estrelas brilham sobre as nossas cabeças -próximas como aqueles adesivos fluorescentes colados ao teto da sua infância, você diz.

    Verne sabia que a viagem de dois anos pelo cosmos proposta em "Hector Servadac" era impossível. Por mais que ele cientificamente sugerisse dias mais curtos, menor gravidade ou um sol que nascia no poente –"todo um universo de cabeça para baixo"–, não existe possibilidade de que uma pequena atmosfera acompanhe pela galáxia um cometa com partes do mundo acopladas a ele (a ilha de Formentera inclusive) e seres vivos. Por isso, o capitão francês que escreve poemas de amor se chama Servadac. O nome ao contrário grafa-se cadavres –"cadáveres".

    No capítulo 4, o capitão Servadac trabalha num rondó para a sua amada. É um poeminha bobo sobre como juramentos e blá-blá-blá são inúteis perto do verdadeiro amor, sugerindo uma práxis amorosa acima do discurso. Pouco antes de ser atingido pelo cataclisma que irá arremessá-lo ao universo, ele parece esquecer disso e volta a fazer promessas à mulher que enxerga por trás do papel. O impacto interromperá suas palavras: "Acredite, o meu amor é seguro! / Eu prometo / Que eu te amo, eu juro / E para...".

    Em Formentera você olha para trás e me chama, estendendo a mão. Eu venço o meu medo de altura, nos beijamos a um passo da queda livre. Hoje à noite, a luz do farol do fim do mundo continuará seu movimento pelo Mediterrâneo. Até que nos alcance.

    j. p. cuenca

    Escreveu até setembro de 2016

    É escritor. Foi selecionado em 2012 pela revista britânica "Granta" como um dos 20 romancistas brasileiros mais promissores com menos de 40 anos.

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