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    João Paulo Cuenca

    A torre de Babel de Hong Kong

    17/04/2014 03h00

    Hong Kong é um território autônomo chinês com traços da colonização inglesa por toda a parte, mas no bairro de Tsim Sha Tsui, em Kowloon, não consigo parar de pensar em Copacabana e certos aglomerados verticais brasileiros. Especialmente na área comercial da Nathan Road -não pelas suas lojas de luxo, mas pela interrupção do panorama virtuoso da Golden Mile através de um conjunto detonado de cinco blocos de 17 andares construído em 1961 e que guarda uma galáxia urbana por trás das suas fronteiras, o célebre Chungking Mansions.

    Por baixo da fachada atulhada de painéis luminosos e telas de LCD fica a entrada do térreo, uma galeria com casas de câmbio anunciadas em neon, placares eletrônicos com a cotação de moedas e agências de transferências de dinheiro.

    A porta do castelo é um lugar de troca e despacho de valores para o mundo –a estimativa é que 120 diferentes nacionalidades circulem por ali a cada ano. A visível maioria é de chineses, africanos, indianos e paquistaneses, muitos de turbante.

    Pouco atrás do primeiro hall de elevadores começa o labirinto com milhares de bancadas de bugigangas, produtos de cabelo, sapatos, DVDs, malas, bolsas, telefones celulares e suas capas, roupas, computadores, biscoitos, laticínios, videogames, ferramentas, falafel, curry, relógios, frutas.

    São três andares e três shoppings independentes que se espalham pelo perímetro da construção –se no Rio de Janeiro temos o Mercado da Uruguaiana e em São Paulo a rua 25 de Março, a base da torre de Babel de Hong Kong é a expressão máxima desse tipo de espaço onde aparentemente tudo está à venda e é barato. A escala desse hub de muamba é tão grande que estimativas indicam que 20% de todos os telefones celulares usados na África subsaariana foram comprados ou passaram por aqui, num exemplo perfeito do que os gringos chamam de "low-end globalization". Estamos numa das suas capitais.

    Nos andares superiores há cerca de 90 pensões baratas com 2.000 quartos. E não apenas: centenas de restaurantes indianos, paquistaneses, nepaleses, nigerianos, filipinos. Talvez seja o principal centro gastronômico de comida étnica do mundo –e ainda oferece banquetes pelo preço de uma coxinha em São Paulo. Pelos longos corredores dos blocos do monstro de concreto e eletricidade há também casas de massagem, karaokês, esconderijos para criminosos, cortiços de imigrantes ilegais, viciados chapados nas escadas estreitas e escuras. Há lendas que envolvem fantasmas, histórias de assassinato e incêndio. E também histórias agridoces de amor –veja "Chungking Express", longa de 1994 do Wong Kar-Wai filmado aqui.

    Na década de 1960 o condomínio era sofisticado, residência de comerciantes ricos, burocratas e oficiais. Hoje me deito numa cama de solteiro sobre um lençol puído e encaro um ventilador com a pá quebrada. Neste quarto, de pé, estico os braços e espalmo as mãos nas duas paredes. Abro a esquadria de alumínio da janela do 12º andar e um varal de roupas encobre minha visão. Encontro espaço entre duas camisolas e olho para baixo: uma espiral de persianas sujas desce até um arranjo de retângulos cinzas cobertos de lixo, a cobertura das galerias comerciais.

    Lá embaixo, Hong Kong anoitece numa nota grave. Todas essas pessoas devem estar com saudade de casa.

    j. p. cuenca

    Escreveu até setembro de 2016

    É escritor. Foi selecionado em 2012 pela revista britânica "Granta" como um dos 20 romancistas brasileiros mais promissores com menos de 40 anos.

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