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    João Paulo Cuenca

    A experiência brasileira

    DE SÃO PAULO

    02/10/2014 02h00

    Valentina Fraiz

    A lufada de vento quente e úmido que entra pelas janelas do táxi, o cheiro de esgoto, as luzes da favela que logo nos cercam quando ganhamos a Linha Vermelha, o vulto iluminado do Cristo no topo do morro distante, e logo o túnel Rebouças, a lagoa, a diferença. E o açaí com granola, o biscoito Globo, o chope aguado, o escondidinho de carne-seca do Jobi, a cachaça no copo de plástico na Lapa, a pimenta no pastel de camarão no murinho da Urca, o polvo do Adega Pérola.

    Acompanhar uma turista europeia chegar ao Brasil pela primeira vez é testemunhar uma sucessão de inaugurações e perguntas. Por que o dinheiro tem figuras de bichos e não de pessoas? Por que o aeroporto é ruim? Por que os prédios são tão feios e colados uns nos outros? Por que as pessoas olham tanto pra mim? E por que falam tão alto?

    O encanto e o susto do visitante escancara o exotismo que insistimos em negar nas nossas tentativas de modernidade. O Rio pode ser algo entre "a Malásia e alguns bairros de Istambul", uma cidade onde "os prédios parecem que foram colocados por uma criança brincando de lego" e "uma feira dentro de uma selva".

    Entende-se o desconcerto. É uma cidade construída sem planejamento ao redor de um maciço que abriga uma floresta tropical. Aqui, na gangorra topográfica que mistura tijolo e mata atlântica, o homem ainda disputa espaço com a floresta e com os macacos a escalar árvores sob círculos traçados no ar por urubus. Do alto dos morros, o panorama íngreme e sinuoso das favelas deságua no paliteiro recordado por tentativas de geometria nas avenidas do asfalto até o oceano. Não há nada parecido com isso.

    Vamos ao centro de ônibus pela orla, onde os bem-adaptados cidadãos do Rio de Janeiro caminham, correm, andam de bicicleta, jogam variações de futebol na areia –altinho, futevôlei, bobinho, gol a gol. Eles bebem água de coco nos quiosques à beira da praia de Ipanema, exercitam-se em aparelhos de metal, bronzeiam seus corpos prósperos navegando pelo calçadão. Observamos esse panorama enquanto tentamos sobreviver à viagem. O motorista dirige como um louco e quase batemos. Depois da freada brusca, a gringa é a única a gritar.

    A praia de Botafogo, os jardins do aterro do Flamengo e logo o centro se anuncia depois da praça Paris. Caminhar pela primeira vez no largo da Carioca, o primeiro café na Confeitaria Colombo e pela primeira vez olhar as colunas neomanuelinas do Gabinete Real Português de Leitura.

    Pela primeira vez perder-se pelas ruas do centro do Rio de Janeiro, entre os carros de som dos candidatos, seus jingles misturando-se aos sons das lojas do Saara numa cacofonia histérica. A gente com pressa, os vendedores de rua, a fauna inusitada, os loucos, os mendigos, nós.

    E o som de bate-estacas, britadeiras, obras que se espalham pelo pentimento arquitetônico do centro do Rio de Janeiro: caixas de janelas, arranha-céus pós-modernos, portarias art déco, prédios afrancesados ou sobrados de herança portuguesa –muitos caindo aos pedaços.

    A cidade engole e regurgita a si mesma num processo de eterna cicatriz aberta, metástase e reconstrução permanente. A experiência brasileira é, também, acostumar-se ao som dessa demolição.

    j. p. cuenca

    Escreveu até setembro de 2016

    É escritor. Foi selecionado em 2012 pela revista britânica "Granta" como um dos 20 romancistas brasileiros mais promissores com menos de 40 anos.

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