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    João Paulo Cuenca

    Algo fora do lugar em Cingapura

    27/11/2014 02h00

    Caminho à noite e algo está fora do lugar em Cingapura. Entre arranha-céus espelhados, avenidas comerciais de luxo e bem-cuidados jardins, a impressão é a de que alguém pode começar a desmontar o cenário e apagar as estrelas a qualquer momento.

    Em tudo há um sentido de irrealidade: os edifícios coloniais ingleses, o Kampong Glam, bairro árabe, e a Little India daqui parecem saídos de um Epcot Center. A Chinatown da ilha tem ar-condicionado na rua e é limpa como um hospital. A depender do ponto de vista, a cidade-Estado pode parecer uma Hong Kong desidratada ou a Miami do sudeste asiático, mas talvez seja mais fácil dizer o que ela não é: imprevisível, perigosa, caótica. O lugar funciona como um relógio suíço –e orwelliano.

    Talvez isso explique o medo que tenho de andar por aqui, ainda que este seja o segundo lugar mais seguro do mundo, perdendo por pouco para o Japão. Seguro se você não professar ideias desagradáveis por aí, claro.

    O processo que transformou uma miserável colônia britânica sem recursos naturais numa das economias mais desenvolvidas do mundo em apenas 50 anos inclui perseguição e encarceramento de opositores, controle da imprensa, censura e restrição a liberdade de manifestação. Opositores foram e ainda são sistematicamente processados. A ditadura que alguns chamam de "benévola" produziu uma cidade-Estado globalizada que tem o terceiro PIB per capita do mundo e também é um dos seus maiores centros portuários e financeiros. Os conjuntos habitacionais construídos pelo governo parecem condomínios de classe média na Barra da Tijuca ou em Moema.

    *

    Está na cara aborrecida dos seus habitantes: Cingapura é sobre trabalho. E o que sobra para quem não pode praticar o esporte nacional das compras nos onipresentes shoppings centers é comer. Há praças de alimentação populares espalhadas por toda a cidade, os "hawker centers". É a versão local da comida de rua que se encontra no resto do sudeste asiático –aqui, nos anos 70, as barraquinhas foram expulsas da calçada. Elas romperiam os padrões de assepsia que incluem a proibição de vender e mascar chicletes e pesadas multas para quem joga lixo no chão. Restou às autoridades isolar em galpões semiorganizados as milhares de pequenas empresas familiares que oferecem comida chinesa, indiana, japonesa e malasiana desde as primeiras horas do amanhecer até a madrugada. O melhor deles que conheci fica na 19, Old Airport Road. Tem 168 balcões, cada um uma porta ao paraíso.

    Num país onde uma cerveja em uma boate pode custar US$ 18 (R$ 45), come-se como um rei pela metade disso. Recomendo escolher várias porções pequenas de comidas que você desconhece. Sonho até agora com a coxinha de rã com pimenta preta.

    *

    Fui convidado por um festival literário. Numa das mesas, opinei sobre a política do meu país e lembrei da penúltima coluna que escrevi aqui, a do "turismo sincero", em que trato o Rio como uma cidade construída sobre um cemitério de escravos e critico a prefeitura, o governo do Estado e a PM.

    Tentei ser irônico e disse que, se minhas opiniões me fizessem perder meu trabalho na TV ou no jornal lá no Brasil, poderia buscar emprego num diário local e escrever o que quisesse. Achei que eles fossem rir da piada. Não riram.

    j. p. cuenca

    Escreveu até setembro de 2016

    É escritor. Foi selecionado em 2012 pela revista britânica "Granta" como um dos 20 romancistas brasileiros mais promissores com menos de 40 anos.

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