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    João Paulo Cuenca

    A cidade mais feia do mundo

    19/02/2015 02h00

    Na semana da minha chegada a São Paulo, ganhei a missão de guiar uma turista francesa em sua primeira experiência paulistana. Como muitos, ela veio fazer seu pré-Carnaval aqui antes de pular no Rio.

    Para esse tipo de estrangeiro, São Paulo é uma escala fora do tom antes da experiência realmente brasileira que esperam ter em cartões-postais como Salvador, Recife ou Rio. Na alta temporada da crise hídrica, talvez uma parada ainda mais exótica do que já é –exótica, digo aqui, por não ser uma cidade suficientemente exótica e tropical num país supostamente exótico e tropical.

    Não consultei o guia. A hora é de chafurdar no hedonismo de guer- ra e bailar a catástrofe em blo- cos de inspiração soviética ou cigana, sem nenhum clóvis ou pierrô, para terminar no Acadêmicos do Baixo Augusta, uma centopeia de gente se esticando da rua Antônia de Queirós até a praça Roosevelt, que é um bloco e também um protesto contra a ocupação do parque Augusta pela força da cimentocracia.

    Nos intervalos, bebemos em bares anônimos do centro sob o som de maquininhas de juke box, fomos à 25 de Março comprar uma peruca de Cleópatra (para mim), vimos performances numa festa conceitual sediada num puteiro com espelhos suados na Bento Freitas, visitamos a fauna do Mandíbula na Galeria Metrópole, tentamos zerar os restaurantes peruanos da avenida Rio Branco. Em todo o fim de semana: não pegar táxis, negar caronas e transporte público, fazer tudo a pé. Olhar para cima: as belas e opressivas fachadas dos prédios da avenida São Luís, os arranha-céus "gothamescos" do Anhangabaú, os postes franceses iluminando a nostalgia suja do Arouche.

    E também olhar para baixo, nas ruas, desafiando o nosso familiar solipsismo brasileiro, dando atenção às calçadas, aos homens e às mulheres dormindo cobertos pelo nosso lixo, às crianças chapadas de cola infiltradas no bloco de Carnaval –quando infiltrados estamos nós no centrão, a rua é deles– e o moleque insistindo por um adereço inútil e iluminado que você não vai dar para minutos depois se arrepender. São Paulo, você descobre, é sobre estar profundamente acordado.

    *

    Um dos grandes prazeres em viajar com alguém é compartilhar o espanto sobre o desconhecido, mas a francesa não parecia espantada como eu. Ou não do meu jeito. Quando olhou a vista do meu apartamento, disse: "Acho que essa é a cidade mais feia do mundo". Quando ouviu falar da falta d'água que paira como um espectro sombrio sobre as nossas cabeças, disse: "E você largou o mar para isso?".

    Na hora eu nada respondi, mas o mar ou a floresta sempre me pareceram paisagens opressivas para se ter na janela de casa. E, sobre a falta d'água, é exatamente o que fará esta ser a cidade mais interessante do mundo em 2015.

    São Paulo não está apenas na vanguarda de um problema que em breve atingirá o resto do Brasil e do planeta, mas será laboratório do seu impacto social. Se a ideia de escassez está associada ao conflito entre os homens, ela também é motor do trabalho, do comércio entre nações e, contraditoriamente, da necessidade de paz. Digressiono pelo seguinte: o racionamento fará São Paulo mais unida e solidária do que nunca. Talvez seja o que historicamente a una, pela primeira vez. E pense nas festas tribais, nuas, purpurinadas e desbundadas que ocuparão a cidade à beira da queda.

    O bloco Rufos e Bufos cantou no sábado passado "A arca de Noé virou/Bebam vinho que a água acabou". É isso: bebamos. Tudo acaba. Para depois começar de novo.

    j. p. cuenca

    Escreveu até setembro de 2016

    É escritor. Foi selecionado em 2012 pela revista britânica "Granta" como um dos 20 romancistas brasileiros mais promissores com menos de 40 anos.

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