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    João Paulo Cuenca

    Tecidos e bonecos de plástico

    31/07/2015 02h00

    Quando termino o shawarma nesse restaurante escondido dentro de um açougue halal, vejo por trás das palavras ABU ALI na vitrine um grupo se concentrar na escadaria de uma mesquita. Aqui, dois senhores discutem em árabe. Lá dentro, o imam se dirige ao mihrab e vai começar a silenciosa oração da tarde. Homens e crianças alinham-se e logo começam as genuflexões voltadas à Meca. Boa parte dos 1,5 bilhão de muçulmanos no mundo fará o mesmo.

    Na calçada em frente, um sujeito vestindo roupas cansadas puxa um burro sem rabo com uma carga de tecido. Um homem de casaco de couro o acompanha, vigiando a mercadoria. Nós os ultrapassamos e percebo que o cara que arrasta o carrinho é boliviano e o dono da carga é coreano. Eles se comunicam num português rudimentar. Seguem pela Rua Barão de Ladário na direção na Praça São Bento, cujo principal marco são as torres românicas e enormes da Igreja de Santo Antônio do Pari.

    Vamos para o lado do Brás e logo temos os sentidos capturados por uma sucessão aparentemente infinita de quarteirões com lojas de confecção apresentando vestidos de festa, shortinhos desfiados, agasalhos esportivos de moletom, blusas, bonés, calcinhas, jeans, bolsas, calças de lamê, tudo isso em variações de estampas como leopardo, tigre, zebra, florais, tribais e todas as cores que se tem notícia. Há também o comércio de manequins e estes nos encaram, nus e com os rostos em branco, por uma quadra inteira. Alguns são gordos, as mulheres tem cinturas mais ou menos largas, as crianças são brancas, negras, transparentes e também prateadas.

    Fotografo os bonecos, se tivesse um apartamento maior compraria uma dúzia e os deixaria na sala, digo, e você responde os vizinhos achariam que você é maluco. Estariam certos, nós concordamos, logo pergunto o preço, são baratos, vou comprar dois, mas levar isso agora ia ser uma complicação. Eles entregam, diz a moça tentando salvar a venda. O problema é que uma compra dessa precisa ser de impulso, eu teria que levar os manequins comigo agora ou então posso me arrepender na hora da entrega e fingir que não estou em casa, não atender o interfone, o que os deixaria abandonados na portaria do Copan ou até na calçada, como manequins de rua, seria a invenção do mannequin clochard!, rimos. A vendedora dá as costas para o nosso senso de humor.

    Saímos e os galpões atacadistas multiplicam-se diante dos nossos olhos, ignoram as notícias de recessão. As obras não param e junto delas o fluxo de ônibus vindos de todo o Brasil carregando sacoleiros e estacionados em pequenas rodoviárias instaladas nos centros comerciais. Entramos num shopping luxuoso com seis andares, esteiras mecânicas, um anexo e um hotel dentro dele. Não conhecemos nenhuma dessas marcas e as roupas são verdadeiramente ridículas para o nosso gosto - o que significa que estes empresários estão ricos enquanto nossa ironia de artista não bota comida no prato, penso, mas não digo.

    Quando o fim da tarde se aproxima, as ruas esvaziam-se rapidamente. O Pari e o Brás, entre saídas e entradas de imigrantes, perderam um terço da sua população nas últimas décadas. Como grandes nacos desses bairros existem unicamente para o comércio, quando anoitece as cores dão lugar ao abandono. Mas há algo que não pode parar aqui e a poucas quadras, em algumas horas, as luzes da Feira da Madrugada voltarão a iluminar tecidos e bonecos de plástico.

    j. p. cuenca

    Escreveu até setembro de 2016

    É escritor. Foi selecionado em 2012 pela revista britânica "Granta" como um dos 20 romancistas brasileiros mais promissores com menos de 40 anos.

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