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    João Paulo Cuenca

    O flâneur paulistano

    07/08/2015 08h02

    Walter Benjamin escreveu que todas as ruas são íngremes para o flâneur. Em Paris, terra prometida e inventora do tipo vagabundo que perambula sem compromisso, a imagem é uma metáfora. Não em São Paulo. O flâneur paulistano é, antes de tudo, um forte. Enquanto as avenidas abertas nos dois lados do Rio Sena pelo Barão Haussmann têm calçadas amplas e planas, perambular por aqui exige mais que os olhos atentos de um Baudelaire. Ao contrário de Paris, é fácil demais perder-se em São Paulo. A cidade não precisa de poesia para transformar-se no antigo sonho humano do labirinto. Ela já é um.

    Começamos na Sé e descemos pela Rua Tabatinguera. A Baixada do Glicério é um amontoado de cortiços, galpões, igrejas, botecos, oficinas e prédios sem fachada sob as artérias suspensas de concreto da Radial Leste, do Viaduto do Glicério e 31 de Março. Em galerias comerciais que misturam-se com garagens, cyber cafés e barbeiros, há uma maioria de haitianos recém-chegados vestindo camisetas coloridas e conversando em creole. Muitos concentram-se no pátio da Paróquia Nossa Senhora da Paz, esperando por algo além de uma promessa de vida melhor.

    Ao subir a Rua Glicério, pouco depois de um terreno baldio com um desmonte de carros, descobrimos a panificadora da família Fanciulli, que produz pão artesanal na região desde 1890. Entre salames e queijos, trata-se de um pequeno enclave de Salerno, Itália, no meio da nova baixa haitiana de São Paulo. Onde não apenas se fala creole, mas se reza em francês: a uma quadra, na direção da Liberdade, vemos um cartaz pintado a mão sobre um portão de garagem anunciar a Assemblée de Dieu des Haitiens.

    O Glicério vira Liberdade pouco depois dali e resolvemos almoçar curry com lombo de porco à milanesa no Kidoairaku, casa japonesa especializada em teishoku na esquina da Galvão Bueno com São Joaquim. Somos recebidos pela mãe do chef que vê televisão e parece jogar conversa fora com os netos ou sobrinhos numa sala de estar. O lugar é familiar e nós também –mas nem tanto, já começamos a beber e é hora do almoço do dia útil.

    Estou acompanhado pelo Fabrício Corsaletti, estupendo poeta de fala e caminhar veloz. Meu companheiro ilustre de ridículo –o que somos nós, nessa cidade hora dessas?– vai ficando mercurial como eu ao longo da caminhada pela tarde de luz amarela e ar auspicioso. Patinamos no registro da euforia, apesar dos obstáculos, ladeiras e viadutos que o alcantilado e inumano traçado da cidade nos oferece. Durante este trajeto, e não apenas, trocaremos observações a mil por hora sobre arquitetura, escritores e, principalmente, sobre banalidades impublicáveis em um jornal.

    Subimos a São Joaquim ultrapassando sua tétrica loja maçônica até a Avenida da Liberdade e algumas quadras adiante flutuamos sobre o movimento de automóveis da 23 pela Condessa de São Joaquim e chegamos à mansão mal-assombrada da Brigadeiro, onde viramos a direita e encontramos a inóspita Praça Pérola Byington. Dali, pela feiosa Rua Jaceguaí, buscaremos abrigo do sol sob a ponte diante do Teatro Oficina, onde fica um mercado.

    Alguns tons acima do realismo, aterrissamos no Box 62, um restaurante no sacolão do viaduto Júlio de Mesquita Filho. Trata-se de um oásis de cerveja gelada e comida espetacular, tocado pela Mara Rasmussen Azenha, que poderia ser professora de letras, mas preferiu alegrar seus comensais e também mudar a cidade de São Paulo. É dela o histórico e precursor bar da Vila Madalena, o Bar da Terra, de 1979. Os vizinhos de Mara esperam que ela tenha feito moda apenas por lá, para o bem do Bexiga.

    Entre essas cervejas e outras, ainda atravessaremos o Bexiga inteiro até a Avenida Paulista pela Rua Rocha, Dr. Seng e Alameda Campinas para uma derradeira no Puppy. Antes de voltar a pé ao nosso ponto de partida no Copan, uns oito ou nove quilômetros de ruas depois. Foram horas, mas foram dias. Estamos obliterados e nos despedimos quase em silêncio, correndo para nos trancar em casa. A grande boca de mil dentes sempre ganha –é ela que olha você e não o contrário.

    j. p. cuenca

    Escreveu até setembro de 2016

    É escritor. Foi selecionado em 2012 pela revista britânica "Granta" como um dos 20 romancistas brasileiros mais promissores com menos de 40 anos.

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