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    João Paulo Cuenca

    Mantenha a esquerda livre

    14/08/2015 02h00

    Caminho pela avenida desviando de canteiros de obras, cloacas abertas e ambulantes. Tento me deixar ir à toa, mas a calçada é uma massa de gente que se arrasta entre tapumes, formam uma fila que leva a lugar nenhum. Sou arrastado. Aqui o inverno não existe, o tempo dilata-se em espera, os ônibus zurram, o ar é úmido e fétido, os sentidos são invadidos pelo que o mundo tem de pior. A vida, afinal, parece ser o que realmente é: uma sucessão interminável de aborrecimentos.

    A complexa engenharia social de muros invisíveis e currais políticos que faz do brasileiro médio este indivíduo exausto, semianalfabeto e ameaçado de morte, pagando muito caro ao Estado por tudo isso, encontra na ex-capital sua expressão máxima. Por aqui a máquina é tão bem azeitada que existe algo como o unânime orgulho de ser carioca, ainda que tal ufanismo ande cada vez pior remunerado.

    Encontro um conhecido na Cinelândia e, pobre coitado, começo a cantilena. Tenho falado tão mal do Rio de Janeiro que poderia escrever um monólogo. Depois que me mudei, poucos minutos em terras cariocas abrem comportas de refluxo biliar subindo ao meu estômago. Como veremos, trata-se do tipo de acidez provocada por amores mal resolvidos.

    Breve digressão: salvo alguns psicanalistas, nunca abandonei nada. Sempre fui alvo da desistência de alguém –de empregos à mulheres. Até meus piores vícios desistiram de mim antes que eu pudesse desistir deles. Ou seja: sempre fui um homem de convicções. E a cidade onde nasci foi a primeira coisa relevante que consegui deixar para trás. Muito mais por excesso de idealização e afeto que por falta deles!, é o que eu tento explicar ao conhecido (já o chamo de amigo) antes que vá embora.

    E um chope aguado no Verdinho ali do lado do Odeon?, convido, solitário. Ele está duro, eu também, mas digo que pago, passo no cartão igual navalha, e o amigo aceita. Sentamos, bebemos, logo recomeço: andei pensando durante as idas e vindas dos últimos meses e há uma imagem que traduz perfeitamente o ethos carioca. É a escada rolante. No metrô ou em galerias comerciais, no Rio o cidadão posta-se indiscriminadamente nos dois lados, ignorando o senso comum e anúncios que repetem: MANTENHA A ESQUERDA LIVRE. Talvez seja mesmo impossível neste eterno chiqueiro do PMDB.

    Reclamar é inútil. Não que o cidadão esteja atrapalhando o meu direito de ir e vir, eu é que estou questionando seu inalienável direito de atravancar a via pública. A determinação do carioca em sua indolência, sua convicção bovina, é nosso destino manifesto. Somos eleitos por deus e pela natureza para ligar o foda-se.

    Meu amigo pergunta sobre a cidade de São Paulo e digo que ela anda irrespirável como todo o Brasil –e não é por causa da poluição. Mas ainda assim o "gap" civilizatório da Via Dutra segue firme em todas as áreas da convivência humana, insisto, veja o exemplo da escada rolante que o paulistano respeita diligentemente.

    Sigo esmerilhando no meu número de ex-marido convicto, um esculacho atrás do outro no pobre balneário desdentado de San Sebastián, periferia eterna do mundo rumo à hecatombe olímpica, quando aterrissa o terceiro chope na mesa. Ou talvez seja o quarto, e aí lanço meu olhar para fora do restaurante onde se pode ver a luz avermelhada do entardecer. Percebo o vai e vem dos transeuntes, o menino dançando sobre uma caçamba de entulho ao lado do pai catador de lata, um cachorro arrastando a coleira pelo chão. Os pivetes cheirando cola na base da escultura de um general, uns sujeitos de terno e pastinha e, por trás deles, o ponto de ônibus bagunçado onde eu pegava, todos os dias, o 180 nos anos em que trabalhei no centro da cidade grande, com vinte e poucos anos e poucas ambições.

    Logo me despeço e ando até a estação do metrô. Cai a noite quente, no caminho compro um refrigerante pra uma menina vendedora de balas que me pede "vê uma Coca-Cola, moço?", e sinto uma ternura indefinida, uma humildade besta entre o povo, até, e lembro do samba e do boteco que nunca mais voltei, penso no Lima e no Noel aqui na Lapa, o Manuel Bandeira no Beco do Rato e, quem sabe, em você, quando percebo: eu sou mais um, estou parado na escada rolante do lado esquerdo.

    j. p. cuenca

    Escreveu até setembro de 2016

    É escritor. Foi selecionado em 2012 pela revista britânica "Granta" como um dos 20 romancistas brasileiros mais promissores com menos de 40 anos.

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