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    João Paulo Cuenca

    Segundo ato

    28/08/2015 02h00

    Descobri que estava morto em maio de 2011.

    Nos próximos meses vou colocar na rua um longa-metragem que escrevi e dirigi sobre o fato ("A morte de J.P. Cuenca") e um romance ("Descobri que estava morto"). Não se trata de uma adaptação. As narrativas partem do mesmo evento e tornam-se complementares. O livro será publicado primeiro em Portugal e só estará nas livrarias brasileiras no ano que vem. O filme estreia antes no Brasil.

    No dia 14 de julho de 2008, a polícia identificou um cadáver com a minha certidão de nascimento. A companheira do morto entregou o meu documento original para identificá-lo. O casal morava num esqueleto de prédio invadido na Rua da Relação, na Lapa, bairro do centro do Rio de Janeiro. Assim, o Registro de Ocorrência No. 005-0591/2008, o Guia de Remoção de Cadáver 042435-1005/2008 e o Laudo Cadavérico no. 04331/08 certificam que morri.

    Depois de algum tempo levando o caso anedoticamente, aos poucos comecei a ficar obcecado com certas perguntas. Elas tinham menos a ver com enigmas concretos (do tipo: como diabos eles conseguiram uma certidão de nascimento original minha, um documento que nunca perdi?) e mais com questões subjetivas, nóias de outra grandeza. Fui à polícia, contratei detetives particulares, mas ficou claro que a investigação que procurava fazer era de outra ordem.

    Quando alguém tira de você seu nome completo, filiação, data de aniversário, naturalidade, números de registro e usa-os para morrer, o que sobra? Fazer esta pergunta é questionar o que somos além deste conjunto de informações e até que medida ele nos define. Os quatro anos entre a descoberta do Registro de Ocorrência No. 005-0591/2008 na Polícia Civil e o lançamento desse objeto filme/livro não me responderam essas perguntas. Mas ofereceram um caminho.

    Um caminho acidentado, no entanto. Se nos meus planos de fuga e desterro eu sempre quis ser outro cara em outro lugar do mundo, acabei por conquistar uma prova material desse alheamento: um cadáver com o meu nome. Um "doppelgänger" que só usou o meu nome para morrer. A partir disso, uma sombra de dúvida passou a cobrir a minha realidade imediata. Passei a desconfiar dela como um velho suspeita das suas lembranças de infância.

    O que o mundo via como um traço excêntrico de personalidade ou mesmo antipatia e arrogância era uma gagueira existencial que já não me permitia completar um raciocínio de um minuto. Sentia como se estivesse constantemente atrasado, ainda que não soubesse para o quê. Enquanto isso, buscava interpretar o papel do escritor, mesmo que eu não estivesse mais lá. Demorei alguns anos para entender o pesadelo dessa história: o fato de que o destino tivesse realizado a minha tão sonhada fuga, o meu sonho de desaparição, sem que eu saísse do lugar. Aquela morte era só para mim.

    Nesse meio-tempo, todas as relações que tinha em bases frágeis foram destruídas. Por transparência de convicções ou falta de talento para respeitar as pecinhas do tabuleiro, me transformei em uma máquina de queimar pontes. Todas as minhas escolhas pareciam me levar para longe de onde deveria estar. Para longe do lugar correto. Todos os caminhos, uma vez que eu os pisava, transformavam-se em desvios.

    A opção pelo risco e uma determinação impermeável em respeitar meus desatinos acabou por afastar parcerias em todos os aspectos da vida. Nada que fosse vagamente superficial sobrou. Machado de Assis, via Brás Cubas, escreveu que a franqueza é a primeira virtude de um defunto. Eu poderia acrescentar outras, todas bastante desagradáveis para as pornográficas e covardes demandas editoriais, profissionais e afetivas do Brasil na primeira década dos anos 2010. Sim, leitor, o desdém dos finados é incomensurável. Que diferença! Que desabafo! Que liberdade!

    Nos bons dias, não me arrependo: a morte me ofereceu um segundo ato. De outra forma, talvez não o tivesse.

    j. p. cuenca

    Escreveu até setembro de 2016

    É escritor. Foi selecionado em 2012 pela revista britânica "Granta" como um dos 20 romancistas brasileiros mais promissores com menos de 40 anos.

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