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    João Paulo Cuenca

    Abaixar as orelhas e ver a história acontecer

    30/10/2015 02h00

    O ator coadjuvante espera num banquinho no fundo do estúdio o momento da sua entrada em cena. Sabe que será rápido seu momento frente às lentes e repassa seu texto. Por trás da equipe e do aparato técnico que faz do set de filmagens aquela fábrica interrompida, ele estica o pescoço para ver a cena. O bom coadjuvante não inveja ou deseja o protagonismo do ator principal. Ele tem consciência do seu papel secundário e aceita-o com espírito. É com tal cerimônia que me aproximo do tema.

    No último dia 28 de outubro, foi forte, raivoso, inesperado, épico e alegre o protesto "Mulheres contra Cunha" na Cinelândia. O movimento acabará coroando, junto com passeatas previstas para hoje na avenida Paulista, em São Paulo, e em todo o país, uma semana que, por motivos diversos, já é histórica para a luta pelos direitos das mulheres no Brasil.

    Eu queria ter ido, mas estou fora e não fui: li relatos, acompanhei vídeos. E agora vejo alguns registros do fotógrafo André Mantelli onde percebo o óbvio: há poucos homens na multidão. Nós, os coadjuvantes da cena, aparecemos ali um pouco deslocados e inseguros, segurando cartazes. Imagino os gritos meio sem voz, certo constrangimento. E na verdade penso: não, não deveria ter ido. Essa aí é delas.

    *

    Vossa Excrescência, o abominável Eduardo Cunha, presidente do congresso mais nefasto da história do país e sequestrador dos poderes do Planalto Central, resolveu mexer com os direitos das mulheres. Através de um projeto de lei, pretende dificultar o atendimento médico e as possibilidades de aborto previstas em caso de estupro. O projeto é perverso como o autor, além de assassino –o aborto ilegal é uma das maiores causas de morte materna no país, sendo a maioria das vítimas obviamente mulheres jovens e negras. Só que o vespeiro onde a versão brasileira do Tea Party mexeu pode virar o jogo. Um jogo bem maior.

    As mulheres brasileiras estão reagindo com o vigor da deusa Kali e talvez seja este movimento o personagem político que precisávamos para tirar o país de um impasse aparentemente incontornável em 2015. É essa coletiva Rainha, peça mais importante do tabuleiro, que pode começar a dar o xeque-mate no cleptocrata cortejado pelos maiores partidos do país.

    *

    A balela patriarcal de que mulheres são competitivas "por natureza" desconstrói-se lindamente através das milhares de declarações de solidariedade e força que tenho lido nos últimos dias através da hashtag #primeiroassedio criada pelo site feminista Think Olga no Facebook. Os temas dos relatos são repugnantes, mas o ato de compartilhar essas lembranças encheu a internet de amor e coragem. Nunca nada parecido havia acontecido em qualquer rede social brasileira.

    Mas o que para as mulheres é um poderoso ato de liberdade e poder, para os homens, por mais que vistam cara de paisagem, no fundo é puro desconcerto e constrangimento. Porque mesmo após ler centenas de relatos sobre assédio, um homem não será capaz de conceber o medo e a opressão que acompanha a o dia a dia de uma mulher. Tampouco adiantará, para aliviar a culpa, confessar seus pecados como alguns já fizeram. Ou mesmo admitir o fato de que, em maior ou menor grau, somos todos assediadores machistas narcísicos perversos privilegiados pela cultura do estupro.

    O homem, por mais feministo que seja, é sempre um machista na origem, Essa é uma batalha diária que teremos que travar contra nós mesmos. Mas este é outro assunto. Agora, o palco é delas. O que nos resta é abaixar as orelhas e ver a história acontecer.

    j. p. cuenca

    Escreveu até setembro de 2016

    É escritor. Foi selecionado em 2012 pela revista britânica "Granta" como um dos 20 romancistas brasileiros mais promissores com menos de 40 anos.

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