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    João Paulo Cuenca

    Uma multidão de solistas

    27/11/2015 07h35

    Estou a jantar com um casal de amigos em Alfama. Eles têm ingressos para um balé, decido acompanhá-los. Não sei do que se trata e, distraído com a conversa, tampouco pergunto. Chegamos à Companhia Nacional de Bailado, no Parque das Nações –eles o chamam de "bairro da expo", um enclave moderno e artificial de Lisboa que lembra Tel Aviv ou a Diagonal Mar, em Barcelona. No foyer do Teatro Camões, vejo grupos de senhorinhas e imagino tratar-se de um clássico. O ingresso diz que o nome do espetáculo é "Morceau de Bravoure" e é com apenas essa informação que entro na sala.

    O início de tudo se dá quando de repente as cortinas se abrem e nos vemos diante de uma imóvel pirâmide humana iluminada por uma luz estroboscópica. É o presumido fim de uma coreografia, os bailarinos ainda ofegantes no centro do palco, esforçando-se para manter suas posições. Em poucos segundos, cai o pano.

    Ouvimos aplausos, não os nossos, mas outros, vindos das caixas de som. Instintivamente nos unimos à gravação. O corpo de baile volta à cena e começa a curvar-se em agradecimento. Nossas palmas cessam aos poucos, já entendemos a piada, mas os bailarinos saem e voltam, a ovação gravada não se interrompe, alguém grita "bravo!", um homem que parece ser o primeiro bailarino busca com a mão uma solista, ela recebe flores e logo abaixa-se em reverência, surgem os autores, coreógrafos, diretores, corifeus na dança russa de "O Quebra-Nozes", há também um cão adestrado perdido em cena, mais buquês de flores, bailarias em alucinadas sequências de fouettes e grand jetés, um homem no fundo desmaia e fica caído no chão, no início há certa consternação, mas logo todos o abandonam e voltam-se à tarefa principal, a de louvar o público e vangloriar-se através daquela celebração aparentemente interminável, e nisso as cortinas fecham e abrem dezenas, centenas de vezes –e para cada uma delas o hierárquico sistema do balé oferece suas codificadas e extravagantes versões de mesuras, genuflexões e agradecimentos em loop.

    "Morceau de Bravoure" é o termo que, no vocabulário da dança clássica, designa o momento específico de execução virtuosa que provoca aplausos em cena aberta. É o que cada um daqueles artistas acredita merecer: uma tonelada de likes. Aos poucos, vemos que há uma disputa circular de protagonismo sobre quem ocupa o holofote: é este o leitmotiv do espetáculo, uma mistura de balé com teatro da Companhia Cão Vadio.

    Em certo momento, uma mulher que descobrimos não ser bailarina, mas cantora, persegue o nosso aplauso e, surpreendida pela cortina que fecha por trás de si, acaba sozinha no proscênio sob um foco de luz. Ela está presa no palco. Improvisa movimentos, constrangida, mas acaba por procurar um buraco na cortina. Sentimos –muitos compartilhamos– seu desespero e vertigem.

    O efeito é patético, exaustivo e, aos poucos, deprimente. Há algo meio beckettiano nesses movimentos fragmentados e na própria encenação que parece negar o próprio balé: é sobre o que acontece depois (ou fora) dele. E isso é só vaidade –uma vaidade que se tenta se disfarçar de humilde, um agradecimento com senso de grandeza, um orgulho que, ainda que seja motor de tudo o que vemos em cena, acaba por ser imobilizante. Não por acaso, é assim que termina o espetáculo.

    *

    No início do mês prometi que as quatro colunas de novembro seriam escritas por mulheres dentro da campanha #AgoraÉQueSãoElas. Mas como uma delas furou o prazo acertado e eu estava com saudades de escrever aqui, voltei. Juro que não foi por vaidade.

    j. p. cuenca

    Escreveu até setembro de 2016

    É escritor. Foi selecionado em 2012 pela revista britânica "Granta" como um dos 20 romancistas brasileiros mais promissores com menos de 40 anos.

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