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    João Paulo Cuenca

    Saudades de 2015

    18/12/2015 02h00

    Começa na estação República da linha amarela do metrô, a plataforma cheia de gente esperando o trem. Ao som do sinal sonoro, a multidão se organiza em filas para entrar nos vagões. Nós, cidadãos da mesma cidade, compartilhando as mesmas circunstâncias.

    Viemos das mesmas ruas lá em cima, sob o mesmo sol incandescente de dezembro, usamos roupa de feriado, somos brasileiros, moramos em São Paulo, este é o penúltimo domingo antes do Natal e nossos relógios marcam uma e meia da tarde.

    Algo mais nos une naquela plataforma: estamos preocupados. Ainda que por diferentes motivos, terrivelmente preocupados. Por isso, desejamos esticar esse domingo ao máximo, fazer a segunda-feira parecer distante. Para tal, almoçaremos em mesas na calçada, beberemos cerveja, venderemos barato nossa alegria, seremos gentis com quem não nos conhece, trocaremos intimidades e ainda terminaremos num karaokê.

    Ou variações disso, mas sempre falando muito alto. É tudo um jeito de afugentar os temores e ajudar a fé. O metrô chega, entramos na composição, segue resistindo em nós um incansável talento para a esperança.

    Do outro lado do vagão, percebo que há um senhor de meia-idade com uma camisa da seleção brasileira. Ele veste bermudas, usa tênis de corrida, segura-se no apoio vertical com firmeza. Deve estar indo para a manifestação contra a Dilma na Avenida Paulista, penso.

    Antes que consiga esboçar qualquer julgamento político (estou à esquerda da Presidente, acho seu governo um desastre, mas sou contra o impeachment, o velho deve ser um reacionário etc.), noto no senhor um ar satisfeito. Quase audacioso.

    O senhor de cabelos brancos sorri. Agora vejo que ele leva no bolso uma corneta. Está sozinho, não parece conhecer ninguém naquele vagão. Ao seu lado, um grupo de adolescentes com ar festivo, um deles carregando um skate, faz com que ele pareça ainda mais só.

    Deixo meu olhar andar à toa pelo metrô plastificado por uma propaganda natalina em tons de vermelho. Nas janelas e paredes da composição, a foto de uma apresentadora de TV quer me vender presunto. Ela sorri de um jeito sinistro e eu digo, não, obrigado, muito obrigado, mas não agora.

    Vejo moças com grandes sacolas e imagino as vitrines coloridas de Natal na 25 de Março. Vejo um jovem casal com os dedos entrelaçados e imagino-os nus, transando diante diante do espelho do armário, o som da TV ligada no programa de auditório ecoando pelo corredor. Vejo também todas aquelas pessoas concentradas em seus telefones celulares, uma porcentagem significativa dos passageiros, o que me provoca o impulso irresistível de fazer o mesmo e tirar o meu do bolso.

    Como ele não dá sinal no túnel subterrâneo, volto minhas atenções ao senhor de cabelos brancos que sorri com a camisa da seleção brasileira. Ele agora parece mais confortável em sua determinação. O sorriso perdeu o ar discreto. Deve ter reparado em outros que irão desembarcar na próxima parada, a Paulista, a caminhar com o mesmo propósito.

    À medida que o trem desacelera, o senhor naturalmente se aproxima das portas. Mas, de repente, algo acontece. Antes que elas se abram, ele vira-se e olha para mim, do outro lado do vagão. Ouvimos juntos o sinal sonoro, os passageiros começam a desembarcar. Não sei se o senhor espera algum tipo de resposta, mas sem pensar faço um sinal de positivo. Ele me devolve e sai, triunfante.

    Mal fecham-se as portas e já estou atônito. Não entendo o que fiz. Discordo radicalmente da manifestação para onde foi o senhor e suspeito das motivações ideológicas que o levaram até lá. Eu poderia marchar contra ele. Mas talvez exista algo mais importante: é que estamos vivendo isso juntos, penso eu, e me dá uma ternura pelas pessoas do nosso grande país, seja lá de qual lado estejam.

    Amadureceremos juntos, viveremos juntos a História, não teremos opção, e eu já quero voltar para a Paulista para beijá-lo em agradecimento e dizer: feliz 2015. Não haverá outro.

    j. p. cuenca

    Escreveu até setembro de 2016

    É escritor. Foi selecionado em 2012 pela revista britânica "Granta" como um dos 20 romancistas brasileiros mais promissores com menos de 40 anos.

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