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    João Paulo Cuenca

    Conto de Natal

    25/12/2015 02h00

    Imagine chegar em casa e descobrir todos os móveis fora de lugar. O susto inicial sugeriria que você acabou de entrar no apartamento errado, talvez a casa do vizinho? Mas logo você reconheceria como seus os móveis, quadros, livros e objetos, apenas dispostos de outra forma.

    Você caminharia da sala ao quarto desviando da nova organização, esbarrando na mesa de jantar, perguntando-se quem teria se dado ao trabalho de tudo isso, e sem levar nada, e em tão pouco tempo... No quarto, a cama estaria também em outro lugar, talvez com a cabeceira sob a janela, e você, após refazer esse caminho algumas vezes, como a se certificar da limpeza e eficácia da operação, se jogaria exausto sobre o colchão e dormiria um sono profundo, acordando no dia seguinte para perceber que os móveis estão fora do lugar novamente.

    E, a partir daí, acordar todos os dias e encontrar tudo fora do lugar. As variações seriam infinitas, a distância entre a mesa de centro e o sofá, a disposição das cadeiras, o ângulo ente as cadeiras, a disposição da pilha dos discos e aparelhos elétricos. Inicialmente, você deixa de sair de casa e tenta parar de dormir, mas eles aproveitam cada cochilo, cada pequena ausência, para fazer as mudanças. Inclusive de um cômodo para o outro: ir ao banheiro significa voltar ao corredor e encontrar os quadros dispostos na diagonal; passar um café na cozinha, voltar a sala e ver a TV agora pendurada na estante.

    Você desiste até mesmo de reconhecer e catalogar em silêncio as alterações feitas. Aceita a entropia –as novas ordens– e decide, depois de meses, sair de casa. Imagina ouvir os móveis arrastando-se pelo chão enquanto espera pelo elevador, desce os andares até a rua e, após dar bom dia ao novo porteiro, ganha as calçadas da sua cidade natal.

    Como esperado, seu caminho entre os arranha-céus em construção, fachadas ocas e estruturas de concreto armado, será de descoberta. Você não reconhece as avenidas que desembocam em terrenos baldios ou escadas de pedra no meio da mata. Nenhum caminho é familiar sob os arcos geométricos de palha e guindastes ciscando vigas, entre canteiros de obra com pilhas de entulho, andaimes equilibrados sobre montes de areia, canais de esgoto e linhas de trem.

    Não é apenas uma simples reorganização das ruas, escadarias, árvores e paredes, mas sim o tempo, você percebe, que passa rápido, que passa novo.

    E à medida que você caminha pelas ruas amareladas da cidade num crepúsculo imóvel, suas galerias, estufas, salões, praças, teatros, domos e postes recém-apagados explodirão por trás dos seus passos. E suas colinas, ladeiras, arcos, escadarias, hotéis, pelourinhos, veleiros, mesquitas e praias serão sugados pelo vazio.

    E ainda os palacetes, salões subterrâneos, apartamentos: quartos, camas, armários e gavetas. As fotos desbotadas e os papéis dentro delas. E as pegadas, passos e páginas por trás de você –todos que conhece, todas suas lembranças, todos os que os conheceram e fossem por eles lembrados, e assim até o fim. Até que você imagine chegar em casa naquela mesma manhã descobrindo todos os móveis fora de lugar.

    j. p. cuenca

    Escreveu até setembro de 2016

    É escritor. Foi selecionado em 2012 pela revista britânica "Granta" como um dos 20 romancistas brasileiros mais promissores com menos de 40 anos.

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