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    João Paulo Cuenca

    A barata branca do Calatrava e o passado

    01/01/2016 07h54

    Do histórico edifício do jornal "A Noite", na praça Mauá, até o recém-inaugurado Museu do Amanhã, há um descampado que em qualquer cidade tropical do mundo deveria ser coberto por grama. Mas a praça no Brasil e no Rio hoje não é para estar, e nossos urbanistas de inspiração soviética meteram 11 mil metros quadrados de granito por ali, para ferver ao sol ou empoçar na chuva. Nos cantos e de forma discreta, espalharam alguns banquinhos, canteirinhos e árvores esparsas, mas nada que altere o panorama de praça-mausoléu, especialmente na porção central. Os próprios projetistas chamam o minúsculo jardim mais próximo à baía de Guanabara de "pequeno oásis". É uma piada: com grama e sombra, a praça inteira poderia ser um.

    Até porque este forno a céu aberto abre caminho à outra aberração, projetada pela estrela espanhola Santiago Calatrava. O sonho banguela do Rio como Barcelona tropical em tempos olímpicos chega ali pelo projeto de um arquiteto severamente questionado em sua terra natal, mas ainda assim responsável –sem nenhuma discussão com arquitetos e contribuintes brasileiros– por plantar numa das áreas mais simbólicas do nosso país um gigantesco fóssil de inseto que poderia estar num caderno de esboços do H.G. Giger. É uma catedral-bibelô tão decorativa quanto o museu que abriga, não havendo nada na sua estrutura que sugira qualquer contexto ou diálogo com a cidade ao redor.

    "Parece um óvni", é o que se escuta o tempo todo dos financiadores da obra, os brasileiros que caminham por ali. O comentário é mais esperto do que parece: é um óvni. Que aterrissou ali como poderia tê-lo feito em qualquer outro lugar do mundo. Pouco importa onde estamos, afinal, trata-se de um genérico que ultrapassa a geografia. É sintomático que a barata branca, no entanto, estabeleça forte diálogo com uma única outra construção do entorno: um navio Costa Concórdia, atracado no porto ao lado.

    Felizmente, o navio vai embora depois do Ano Novo. Infelizmente, ainda teremos que conviver com a barata branca por mais tempo. Depois que os mafiosos que a colocaram ali forem presos ou desaparecerem, ela seguirá nos assombrando.

    Ao que tudo indica, esta convivência será cara não apenas aos nossos olhos. Pelo mundo, as obras de Calatrava são famosas por parecer esqueletos de peixes, por romper prazos e orçamentos, e por dar problemas durante anos. Aqui, o Museu do Amanhã foi inaugurado há duas semanas e já se vê manchas na sua estrutura. Em vários pontos, o branco-navio já está amarelado ou escurecido. O jardim em muitos pontos é um lamaçal. Mas o pior é o estado do espelho-d'água ao redor do prédio. Ele teria "água cristalina" alimentada e limpa por um complexo sistema de filtragem e captação como "uma forma de mostrar aos jovens que a baía de Guanabara pode, sim, ficar completamente limpa um dia". O museu mal abriu e a água está imunda e parada. "Taí o legado olímpico: uma piscina olímpica de Aedes Aegypti", ouvi alguém dizer, incrédulo.

    Ainda mais grave e questionável que tudo isso é a decisão de construir um museu alienígena sobre um genérico "amanhã" justamente na zona portuária, por onde entraram os milhões de africanos que fizeram do Rio de Janeiro o maior entreposto de escravos do planeta Terra entre os séculos 18 e 19. Milhares deles, aliás, ainda enterrados por ali mesmo: obras na região costumam revelar importantes descobertas de ossadas.

    Uma rápida caminhada do "amanhã" até o cais do Valongo, na Gamboa, o maior porto escravagista da história, mostra o espetacular descaso com o qual a tratamos. Um descaso que nos imobiliza: não há possibilidade de amanhã se não reconhecermos nosso passado. Enfiar goela abaixo da cidade um museu de "terceira geração" num lugar tão simbólico para nosso passado escravocrata enquanto tratamos descobertas arqueológicas como lixo é reforçar o apagamento, é aterrar nossa história mais uma vez –exatamente como fez Pereira Passos por ali, aliás.

    Um museu desse porte na área do porto só poderia ser um grande memorial sobre a escravidão –ou construído apenas depois desse museu, o que mais precisamos.

    No mesmo dia, para vencer o desespero, fui dali ao cortejo de fim de ano do Cordão do Prata Preta, onde o samba resiste: longe dos criminosos da prefeitura, da Liesa e da TV. Quando estávamos descendo a ladeira do Livramento, onde Machado de Assis nasceu e onde sua casa hoje é um cortiço sem lembrança, a bebedeira me ofereceu uma visão quando um poste subitamente apagou: o filme Poltergeist.

    É claro: a herança de seguir construindo e vivendo sobre este gigantesco cemitério sem nenhum respeito sobre seu passado só pode ser uma pesada maldição. A barata branca do Calatrava cairá, arrastada pelo passado, junto a seus cretinos idealizadores. No amanhã sugerido pelo nome do museu, sua construção despertará fantasmas: precisamos deles mais do que nunca.

    j. p. cuenca

    Escreveu até setembro de 2016

    É escritor. Foi selecionado em 2012 pela revista britânica "Granta" como um dos 20 romancistas brasileiros mais promissores com menos de 40 anos.

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