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    João Paulo Cuenca

    Calado por muito tempo

    08/01/2016 07h30

    Começou quando eu reclamei da cerveja brasileira de milho transgênico, patrocinadora do Carnaval carioca e monopolista do comércio nas ruas –o verdadeiro motivo pelo qual a Guarda Municipal desceu o cacete em camelôs e foliões no final de semana passado.

    - Não chatifique o mundo, Cuenca... Sommelier de cervejinha agora?

    O Roberto Protz é um jornalista, editor e escritor reconhecido pela intelligentsia do balneário, uma década mais velho que eu. Editou meus primeiros livros, o que faz dele uma pessoa a quem eu devo muito –e nunca seremos capazes de nos perdoar por isso. É também um dos poucos amigos de mais de uma década que me sobram. Por sua boêmia legendária e invencível, poderia ser o líder da resistência (das minhas amizades, entenda-se) não fosse, ele mesmo, reticente a encontrar comigo, farto do caos que se anuncia sempre que começamos a beber.

    Anunciei o plano de suitar meu texto da semana passada sobre o Museu do Amanhã, na zona portuária do Rio, com diatribes contra o mecenato à brasileira e outras vagabundagens disfarçadas sob pele de cordeiro em conluio com a imprensa corrompida.

    Eu estava mesmo inflamado, falando de verbas de conservação ambiental desviadas de fundos do governo do Estado para fundações privadas, traçando comparações com famílias gringas (e as poucas brasileiras) que investem milhões em cultura com dinheiro do próprio bolso.

    Ele ouvia tudo em silêncio com um arco de irritação nas sobrancelhas, os óculos a deslizar pelo maiúsculo nariz de italiano meridional ou libanês –a depender da hora do dia ou da noite. Interrompeu-me sem esconder a irritação, mudando de assunto sem mudar de assunto:

    - Olha, depois que esse seu livro novo for publicado... Se eu fosse você eu ficava calado por muito tempo.

    - Por quê?

    - Tá muito galinho de briga. Aliás, não precisa esperar livro sair, não. Pode ficar mais quieto desde já.

    - Galinho de briga?

    - Sim. E isso é dispersivo.

    - Eu tenho que deixar tudo passar?

    - Nós estamos chafurdando numa dicotomia insuportável. De um lado a direita malvada, do outro uma militância de esquerda de merda, governista ou anti-governista. Um bando de indignados de plantão. Indignados e tapados.

    - E eu sou um deles?

    - Você certamente alimenta o chorume geral.

    - Porra. Eu?

    - Tá muito histérico.

    - Não. Eu só estou ativo.

    - Estar ativo não quer dizer estar publicamente ativo. A sua vida intelectual tem que ser pautada por uma só coisa: estudo. Não por essa performance vagabunda de polemista de ocasião. Você é um escritor, certo?

    - Não consigo separar as coisas.

    - Pra piorar, você não tem guarda-chuva nenhum e elege como tal seus likes. Like vai pagar teu aluguel?

    - Não.

    - Mas você fica caçando like. Antes disso tem tanta coisa. Ler mais. Estudar mais.

    - E eu vou escrever sobre o quê?

    - Sei lá. Sobre o que você está lendo?

    - Você quer que eu publique um diário de leituras em 2016?

    - Seria bastante mais interessante do que ver você querendo sempre estar do lado certo a cada semana.

    - Você quer que eu seja um escritor desconectado da realidade escrevendo semanalmente pra um jornal? Um alienado?

    - Olha pros calados. O exemplo dos escritores calados!

    - Os calados só se calam porque podem.

    - Mais uma cerveja de milho?

    j. p. cuenca

    Escreveu até setembro de 2016

    É escritor. Foi selecionado em 2012 pela revista britânica "Granta" como um dos 20 romancistas brasileiros mais promissores com menos de 40 anos.

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