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    João Paulo Cuenca

    BOWIE

    15/01/2016 09h04

    Como tantos, recebi a notícia atônito, muito comovido e subitamente envelhecido. Passou o filme da minha infância e adolescência, todos os momentos em que Bowie foi melhor amigo imaginário. A mistura de admiração, assombro e amor que só se tem por um ídolo. É um lugar de refúgio e por isso choramos.

    A verdade é que eu sempre fui meio apaixonado por ele, hoje percebo. Bowie me mostrou desde bastante cedo que não havia nenhum problema em usar saias e maquiagem (ok, eu curto). E me ensinou a dançar. Sua sexualidade difusa era simplesmente libertadora no Brasil dos anos 1980 e 1990 –um país ainda mais machista e sem qualquer respeito pela diferença.

    Sua morte faz pensar em quem somos –e sobre como fomos moldados por ele. O século 20 não seria o mesmo sem o David Bowie, eu muito menos.

    Em diferentes momentos, Bowie me apresentou a música eletrônica, a Berlim, a Nietzsche, a Andy Warhol, ao estilo, a guitarras distorcidas e dissonantes, a George Orwell e a própria ideia de distopia. Mas, acima de tudo, Bowie me ajudou a aceitar o fato de que sempre serei um estranho inadequado. E o fez com uma sugestão poderosa: a de transformar essa estranheza em força, com elegância e, se possível, alguma poesia. O garoto que cresceu trancado no quarto num subúrbio de Londres na opressora Inglaterra do pós-guerra deu lições de Übermensch, coragem e desconstrução, não apenas de gênero, para o mundo.

    Ele não esqueceu do quarto onde se escondia. Carregou-o para sempre. E suas canções sobre alienação, existencialismo e isolamento me encontraram no quarto onde eu me trancava para puxar angústia e ouvir suas fitas num walkman. Do subúrbio de Londres para o subúrbio do mundo, na capital tropical do extremo-ocidente. Eu também decidi carregar esse bendito quarto do Rio de Janeiro pelo resto da vida –e levar comigo a trilha sonora, fio condutor da existência.

    Ao longo das exéquias globais dessa semana, entre histórias pessoais com o morto do tipo que se contam em velórios de gente querida, a tônica das declarações nas redes era algo como: "ele me ajudou a descobrir quem eu sou". Herança bastante adequada para um artista que passou a vida inteira se abandonando e se descobrindo até as vésperas da sua morte.

    Bowie foi um visionário, um Kafka nascido no espaço sideral, com senso de humor e um profundo desrespeito às suas impossibilidades: ele era total. Projetava sua persona complexa e caleidoscópica onde quisesse: era homem, mulher, criança, punk, dandy, andrógino, barítono, libertino, clown. A identidade, sempre disse Bowie, é uma construção nossa. Sua vida-obra foi (é) uma performance em progresso, e ainda será reavaliada e revisitada muitas vezes. Vivia suas transformações cantando sobre elas, nos fazendo acreditar que, se quiséssemos, também poderíamos viver várias vidas numa só.

    É irônico que, como um Montaigne pós-moderno, a seu jeito Bowie tenha oferecido ajuda a milhões de seres humanos relativamente convencionais em crises afetivas, familiares ou de trabalho. Mais que isso: em tempos de deus-morto e modernidade líquida, o mito teatral que mistura Rimbaud com Pepsi Cola em videoclipes coloridos na TV (nada nunca será mais colorido daquele jeito) virou uma espécie de líder espiritual gnóstico para desajustados como eu. E, coerentemente, eternizou-se em formato de pentagrama negro, usando referências bíblicas, esotéricas e apocalípticas que levarão décadas sendo destrinchadas. O mais relevante artista popular do século 20, ator-autor como nenhum outro, precisa de uma internet só para ele.

    Foi um onívoro e obsessivo estudante de arte cuja curiosidade interminável o levou a encarnar o papel de homem da renascença da sua geração. Segundo ele: "Não tenho lealdade estilística. É por isso que as pessoas me veem mudando o tempo inteiro. Mas existe uma forte continuidade na minha obra. Como um artista do artifício, eu acredito ter mais integridade que qualquer um dos meus contemporâneos. () Escrevo sobre temas muito pessoais e solitários e os exploro de formas diferentes a cada vez."

    Bowie não apenas surfou o "zeitgeist" (espírito do tempo), mas foi o Netuno que criou muitas de suas ondas. Entre suas mutações, fugiu da banalidade sempre fazendo exatamente o que quis, desde matar suas galinhas de ouro até morrer nos ajudando a lidar com a sua própria morte –através de uma alquimia em disco, performance, vídeo e teatro sem paralelos na história da arte. Foi mais sincero e honesto através de seus personagens do que legiões de artistas de cara limpa. Poucos foram tão singulares e verdadeiros a cada momento, no centro de tudo, profundamente acordados, durante tanto tempo.

    E, sim, talvez agora possamos começar o século 21.

    j. p. cuenca

    Escreveu até setembro de 2016

    É escritor. Foi selecionado em 2012 pela revista britânica "Granta" como um dos 20 romancistas brasileiros mais promissores com menos de 40 anos.

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