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    João Paulo Cuenca

    Cidade inapreensível

    26/01/2016 09h09

    Até o próximo domingo (31) estará numa das salas da Pinacoteca do Estado a instalação em vídeo "Contemplação Suspensa", do artista Rubens Mano. O trabalho, parte do panorama de arte contemporânea promovido pelo museu, é apresentado num monitor de TV vertical e consiste num plano sem cortes de 35 minutos da cidade de São Paulo vista do alto, de norte a sul, da Serra da Cantareira à Serra do Mar.

    A obra fez parte de uma intervenção de Mano na Pinacoteca em 2008, quando ele suspendeu uma ponte interrompida na cúpula do octógono do edifício. Só a vi nesta segunda (25), no dia do aniversário da cidade. Ficou como um tributo incômodo.

    Captadas por uma câmera montada num helicóptero, as imagens desenrolam-se como se a paisagem fosse uma faixa ou rolo girando numa esteira. Voamos em linha reta, pouco acima dos arranha-céus, e olhamos a cidade perpendicularmente, através de lentes apontadas para baixo, sem horizonte ou fuga.

    A perspectiva vertiginosa do vídeo revela o traçado das nossas ruas e avenidas: um labirinto que escapa a qualquer tentativa de ordem ou mesmo categorização. Há entroncamentos em forma de Y, X, W ou H. Quarteirões que são triângulos, outros trapézios e ainda outros manchas de casas trepadas umas nas outras que rejeitam a geometria. Arranha-céus com piscinas redondas no topo, gigantescos cartuchos de bala projetando sombras compridas em blocos de casas-contêiner, terrenos baldios, mansões, campos de futebol, edifícios espelhados, descampados. O concreto dá espaço ao mato, à floresta e aos rios, mas logo o olho do scanner nos revela torres de transmissão de energia e fábricas, galpões com teto de zinco, centros de logística, e um outro helicóptero voando mais baixo cruzando a imagem como uma libélula. E mais corredores de concreto, aeroportos, catedrais, tobogãs de carros, viadutos, casebres, rodovias, cemitérios, mansões, desmanches e depósitos de lixo.

    Essa paisagem transforma-se bruscamente, em soluços, e vai se fragmentando cada vez mais. Não parece haver um algoritmo ou fórmula possível por trás dela e sua imprevisibilidade provoca uma estranha sugestão: a topografia criada pelo homem em São Paulo contrapõe-se à natureza, mas tampouco se aproxima de uma intervenção racional. Um ninho de formigas subterrâneo é infinitamente mais bem planejado do que seu traçado urbano. E cipós e árvores na selva também têm lá sua lógica, o que faz a expressão "selva de pedra" insuficiente para definir a cidade inapreensível.

    Precisamos fazer sentido dentro desse quebra-cabeças monstruoso: o tecido esgarçado e inumano de São Paulo nos une em solidariedade. Viver aqui há um ano já mudou isso em mim: se o Antonio Prata anda abraçando árvores, eu saio pelas ruas querendo abraçar os outros.

    j. p. cuenca

    Escreveu até setembro de 2016

    É escritor. Foi selecionado em 2012 pela revista britânica "Granta" como um dos 20 romancistas brasileiros mais promissores com menos de 40 anos.

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