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    João Paulo Cuenca

    Ficar em Cabo Verde

    02/02/2016 02h00

    O pensador português Eduardo Lourenço, num dos seus ensaios mais célebres, "Tempo Português", define seus compatriotas como detentores de um "destino de povo marítimo, viajante, separado de si mesmo pelas águas do mar e do tempo". Predestinado ao desterro, o português viveu e vive simbolicamente numa ilha - segundo Lourenço, ilha-saudade, ilha mítica por excelência da Europa, ocupada por um povo em fuga de si mesmo. Ao longo dos séculos, esses ícaros jogaram-se ao desconhecido buscando um sol separado deles pelo oceano e por quedas vertiginosas. Com eles, levaram milhões. Não que todos quisessem.

    Após as tragédias do etnocídio indígena no Brasil e do brutal regime escravocrata em todas as colônias, a herança central que os portugueses deixaram nessas terras além da língua e da cruz foi a mesma dúvida de ilhéu: ficar ou partir? Pois a ilha é um território cercado por esta pergunta, sob a dupla sentença do exílio e da saudade. O projeto de buscar-se a si mesmo fora, ir para regressar - e talvez perceber-se mais à vontade no mundo que em casa. Bonita melancolia que, no entanto, pela História uniu poetas a traficantes de escravos.

    Talvez o projeto de instalar-se à margem do mundo com tal estado de diáspora mental tenha sido levado a perfeição em Cabo Verde. Até a segunda metade do século XV não havia nada além de pedras no arquipélago africano, e agora há. Os seres humanos mais bonitos e elegantes do mundo a dançar as mornas mais bonitas e mais tristes. E que sonham em emigrar ou já dizem adeus: há muito mais cabo-verdianos fora do país que aqui.

    Depois de poucas horas na Cidade Velha, uma mistura de recôncavo baiano com caribe na África subsaariana, tenho vontade de aprender crioulo, alugar uma casa e fazer o contrário: ficar. E tentar convencê-los a interromper essa maldição herdada dos portugueses - que projetem, enfim, sua nostalgia para o futuro desse paraíso perdido.

    j. p. cuenca

    Escreveu até setembro de 2016

    É escritor. Foi selecionado em 2012 pela revista britânica "Granta" como um dos 20 romancistas brasileiros mais promissores com menos de 40 anos.

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