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    João Paulo Cuenca

    A lenta na Zero Horas

    05/02/2016 02h00

    Uma tradição infelizmente há muito abandonada no Brasil é o costume de dançar música lenta em festas, salões e discotecas. Da valsa vienense à balada oitentista passando por bailes de orquestra, a circunstância de dançar agarradinho sob compassos suaves foi, para boa parte do nosso povo, a primeira vez em que nos vimos nos braços de alguém.

    "A hora da lenta", dizíamos, quando o DJ interrompia um set de hits frenéticos para enfileirar uma sequencia de baladas. Inicialmente, a pista abria-se num vazio medroso. As meninas e os meninos plantavam-se contra paredes opostas no salão do playground do prédio ou da matinê. Depois, era vencer a timidez e chamar a menina pra dançar. Priápico frenesi sob solos de saxofone. A descoberta da nuca e do cheiro dos cabelos da mulher colados na pele escorrendo suor. Isso durava meia hora até que luzes coloridas voltavam a piscar e os casais descolavam-se como tentáculos saciados, voltando a dançar aquilo que chamávamos música rápida.

    Já na metade dos anos 90, a lógica das festas excluiu a hora da lenta e isso nunca mais voltou. Mas por sorte existe Cabo Verde, a Ilha de Santiago e sua capital, a Cidade da Praia. Ali, numa rua erma de galpões industriais na Achada Grande, há uma boate-fortaleza cuja entrada é uma jaula dessas comuns à entrada de prisões ou fronteiras bastante guarnecidas. Após pagar 500 escudos cabo-verdianos por uma pulseira de papel e atravessar policiais e seguranças, entramos na célebre Discoteca Zero Horas, uma tradição local.

    A boate tem cinco níveis de mezaninos, parte do teto aberto às estrelas e uma cabine suspensa de comandante-DJ na proa do barco com arquivos de biblioteca e algo de estação de rádio de ondas curtas. Ouvimos zouk eletrônico e kizomba em cadências suaves, apesar do grave rimombando pelas canelas. Por todas as partes, vemos casais entrelaçados em diferentes gradações de rebolado e amasso. Se isso aqui não for o xangri-lá ou a meca da música lenta é pelo menos um dos seus principais templos no mundo.

    Bebo minhas cervejinhas Strela tentando disfarçar a comoção. Observo um foco de luz que ilumina certo casal no nível inferior do teatro. Ela tem uma pele de vestido verde e cabelo black power, ele usa moletom e tênis branco, colar e pulseiras douradas. Movimentam-se lentamente, sobre plumas, o que não lhes impede de dobrar os joelhos, descendo na maciota, sem pesar.

    De repente, o homem envolve a mulher um pouco mais com o braço direito e os dois executam o passo que transforma o encontro dos seus quadris no aleph da pista, para onde tudo converge: dançam cada vez mais lentamente, apenas a respiração dos corpos um contra o outro, até que congelam-se, abraçados. E ficam ali, imóveis, até a próxima, protegidos por uma nuvem de fumaça e luz negra.

    Ao fim da lenta na Zero Horas em Cabo Verde, essas estátuas podem olhar para onde quiserem —jamais se transformarão em sal.

    j. p. cuenca

    Escreveu até setembro de 2016

    É escritor. Foi selecionado em 2012 pela revista britânica "Granta" como um dos 20 romancistas brasileiros mais promissores com menos de 40 anos.

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