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    João Paulo Cuenca

    Morar na Elipse de Borromini em Roma

    26/02/2016 02h00

    Poucos dias depois da desorientação dos sentidos na sala com as esculturas do Richard Serra em Bilbao, pude gastar algumas horas vagando pela pequena igreja de San Carlo alle Quattro Fontane, em Roma. A relação entre os dois espaços está no trompe-l'oeil geométrico e sobrenatural –e na inspiração que o artista norte-americano encontrou na igreja projetada por Francesco Borromini em 1634.

    Sobre ela, fundamental para a criação de suas primeiras e revolucionárias "Torqued Elipses" nos anos 1990, Serra declarou: "Eu estava num corredor lateral, olhando para o espaço oval no chão e para a mesma forma na cúpula, chamada de elipse de Borromini. Pensei que eles estavam com os ângulos alinhados. Quando eu caminhei para o centro da nave da Igreja, percebi que estava errado. Mas fiquei pensando: como eu poderia criar - ou mesmo provocar - esse erro de interpretaçao?"

    Conseguiu ao erguer monumentais placas de ferro inspiradas nesse volume cilíndrico e entortando-as em elevação, variando os ângulos com os quais as elipses estão dispostas, girando a forma sobre si mesma. O que Serra chamou de erro de interpretação, certo desalinho dos sentidos que experimentou ao caminhar pela igreja de Borromini, mudou sua obra - e, para muitos, a história da escultura.

    Aqui, a síntese pós-industrial de Serra parece uma grosseria gringa. Ao longo da nave da igreja de San Carlo, Borromini dispôs uma sequência de paredes e arcos côncavos e convexos que dilatam o espaço até o teto ocupado pela cúpula elíptica e longitudinal, branca como o resto do interior, e adornada por um intrincado padrão de cruzes, octógonos e hexágonos. O lugar parece muito maior do que realmente é e pulsa como um órgão robótico –os mistérios dessa máquina originam-se em ângulos riscados pelo espírito criador do homem, longe da natureza. A luz que inunda o ambiente vem do topo de tudo: uma abertura no centro da elipse, onde há um Espírito Santo dourado.

    Ao repetir os passos de Serra na igreja da Via del Quirinale senti que estava caminhando para cima. E para baixo. Ao mesmo tempo. Mais do que isso: a cada passo, a igreja muda de forma, ela é algum tipo de caleidoscópio arquitetônico fantástico. O barroco de Borromini tem efeito teatral semelhante ao que a gramática escultórica de Serra provoca em consumidores de arte contemporânea mais de três séculos depois. No entanto, há uma diferença fundamental: enquanto a ambiguidade desse espaço-escultura em Serra é psicológica, obscura e mesmo opressiva, aqui a imersão sugere ascese e paz.

    Elevação, apenas, e nada de culpa, flagelos ou dogmas - o oposto do que se encontra nas obras do seu grande e bem sucedido rival Bernini. O humanismo de Borromini em suas elipses expressivas faz com que essa igreja me provoque a mesma reação que tenho em templos budistas na Ásia: não querer ir embora, não conseguir parar de olhar para o alto. Morar naquela elipse.

    j. p. cuenca

    Escreveu até setembro de 2016

    É escritor. Foi selecionado em 2012 pela revista britânica "Granta" como um dos 20 romancistas brasileiros mais promissores com menos de 40 anos.

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