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    João Paulo Cuenca

    A arte do fracasso

    01/03/2016 02h00

    Um escritor começa a fazer filmes pouco antes de completar 40 anos. Dirige e atua em seu primeiro longa-metragem como um personagem de ficção fazendo cinema documental sobre um escritor "real" que se crê esse personagem. O filme, sobre irresoluto episódio de roubo de identidade e morte, tem alusões a um livro que poucos leram, transita entre gêneros e sua última meia-hora requer do espectador uma generosidade pouco encontrada em salas de cinema hoje em dia.

    Não precisei inventar inquérito ou documento: o caso, descoberto em 2011, é real. Por isso, "A morte de J.P. Cuenca" tem sido exibido em festivais de documentários, embora não se pareça com um. Baseia-se em fatos e mostra verdades, mas seu repertório formal desequilibrado faz com que estas pareçam mentiras. Tal realismo virado ao contrário, uma caixa-preta cheia de ranhuras e engrenagens abertas, pode ser incômodo - de fato, é pensado para transmitir um mindfuck.

    O personagem do escritor é retratado no que tem de mais patético. Como diz Rodolfo Fogwill: "Ser escritor: o que pior pode acontecer com você?" O problema, e agora cito outro argentino, o anti-Fogwill, Jorge Luis Borges, é que alguém que ri ou fala mal de si mesmo como piada para se aproximar dos outros corre o risco de ser levado à sério. Para muitos espectadores, é este o caso.

    O filme já passou pela mostra competitiva de alguns festivais, e ainda perderá outros. A experiência de viajar com ele contradiz o manjado "falhar melhor" de Beckett. O fracasso, sinônimo de literatura como também nos repete Vila-Matas, ganha contornos muito mais espetaculares no mundo do cinema. Um fracasso duro, de prestígio vulgar, em que qualquer pequeno reconhecimento é imediatamente confrontado com um degrau superior, convite ou prêmio, que jamais se alcançará. Estamos sempre perdendo algo mais caro, iluminado e brilhante.

    A cineasta francesa Claire Simon, membro do júri de um festival espanhol, disse mês passado que o filme era um "pesadelo paranóico". Nós dividíamos a gravação de um programa de rádio e na hora não tive coragem de completar que o maior pesadelo era justamente a extensão da experiência neurótica e labiríntica do filme para fora dele. Seu novelo conceitual está estruturado de forma que o personagem visto na tela do cinema continue igualmente ridículo e solitário fora dela, sem conquistar grandes empatias, vagando como um fantasma de si mesmo, um humanóide-obra conceitual aberta à espera da desintegração.

    Ou de uma porrada na cara. O cinema é um cristal de rejeição que oferece inéditos reflexos: o olhar de desprezo de um colega, a luta de vaidades num coquetel com curadores, o pôster do filme colado e rasgado no banheiro de uma festa de encerramento, rancores em entrevistas malcriadas. O desconhecido que, no meio da madrugada bêbada da noite de estréia em Copenhagen, bate no seu ombro e pergunta, incrédulo: "Por que diabos você fez isso?"

    Penso em Pasolini: "minha independência, que é a minha força, me leva à solidão, que é a minha fraqueza." Mas este pretenso escritor e cineasta não é um Pasolini, obviamente, e sim indigno desta solidão cristã, cheia de sacrifícios e méritos. Por isso, o fracasso que proponho através dos sistemas imperfeitos de lógica que persigo, carentes de sentido, frustrantes para o leitor/espectador, incompletos e pretensamente autênticos deveria ser total. Um fiasco irresistível, absoluto.

    Mas o artista do fracasso errou e terminou o filme. E logo há também a sedução do pequeno elogio, um pedido de autógrafo, talvez uma selfie, o convite para outro festival de cinema, alguém que prefere o novo ao bom e parece, enfim, ter pescado alguma coisa. Qualquer coisa. Alpistes que buscamos com o bico no chão, alimendando frivolidades. No escuro, a esperança do sucessinho oscila como a luz de uma vela. Ela é sua própria maldição. E aí um nova derrota, ainda maior - falhar até mesmo em fracassar completamente.

    j. p. cuenca

    Escreveu até setembro de 2016

    É escritor. Foi selecionado em 2012 pela revista britânica "Granta" como um dos 20 romancistas brasileiros mais promissores com menos de 40 anos.

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