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    João Paulo Cuenca

    O 'All-In' do Lula

    08/03/2016 02h00

    Na sexta-feira passada, durante um almoço com dois amigos, conversávamos sobre o terremoto político e os desdobramentos daquela manhã quando me surpreendi falando baixo, preocupado com quem estava na mesa ao lado.

    Tempos estranhos estes quando os lacerdas pululam e qualquer mesa ganha ares de conspiração. Em 2016, caso suas ponderações desafiem a instrumentalização ideológica de um lado ou de outro, discordar de narrativas hegemônicas pode acabar em porrada. Na queda de braço entre falsas dicotomias, o debate não perde apenas em inteligência, mas vira uma disputa moral vagabunda. Emburrecemos num poço de proselitismo histérico, alimentado pela imprensa e fermentado em redes sociais. Montaigne: "Obstinação e calor no debate são as maiores provas de tolice." Eu acrescentaria outra, bem brasileira: nossa histórica falta de autocrítica.

    O assunto era mais ou menos esse enquanto terminávamos de devorar o katsu domburi (lombo à milanesa cozido no shoyu) no Mugui, casa japonesa naquele predinho da rua da Glória, quando um de nós lembrou: estamos ao lado da sede do PT, é aqui na Sé. Não pensamos muito. Tomados por algum sentido histórico e o vago desejo de estar perto da ação, caminhamos até lá.

    Encontramos uma multidão irritada em frente ao diretório nacional do partido. Cantavam "não vai ter golpe" e erguiam bandeiras brancas com a estrela do PT. Lula estava no prédio e em pouco tempo daria uma coletiva. A circunstância era grave: ele vinha direto de um depoimento à Polícia Federal depois de ter sido tirado de casa num camburão –a primeira vez que um ex-presidente brasileiro recebeu esse tratamento.

    A portaria do prédio era uma sauna. Mais de uma centena de jornalistas se espremia à espera da liberação para subir a um auditório não muito maior que aquela sala. Entre a hora que se passou e o empurra-empurra, meus amigos me abandonaram. Primeiro subiram as câmeras de TV, depois os fotógrafos, depois os repórteres com credencial. Insisti. Com a ajuda de colegas da Folha, fui um dos últimos a entrar. Fiquei em pé, três fileiras de jornalistas e militantes erguendo microfones e celulares à minha frente. Do lado esquerdo da sala e da mesa com a bandeira do PT.

    Uma faísca logo percorre o pequeno auditório de teto rebaixado e luz branca, alguém grita que o homem vai chegar. Os seguranças nos empurram um pouco mais uns contra os outros. A militância, misturada aos jornalistas, começa a cantar "Olê, olê, olê, ô, lá, Lulá, Lulá". Para qualquer lado onde aponte o meu celular há outras câmeras ligadas, o que faz com que minha visão ganhe vários recortes em pequenos quadrinhos de LCD com a reprodução de diferentes pontos de vista, como um panóptico improvisado. As fotos e vídeos que faço estão cheios de nucas e desses fragmentos de imagem.

    Como estou perto do elevador, vejo a chegada do ex-presidente. Ele tem o ar algo abatido, a testa franzida, mas oferece um sorriso pelo corredor de flashes. Parece conservar alguma humanidade no rosto, algo incomum em políticos. As pessoas hesitam em aproximar-se. O primeiro a abraçá-lo é Eduardo Suplicy, que afaga sua cabeça antes que ele chegue à mesa com os microfones.

    Lula falou de improviso por meia hora em depoimento transmitido ao vivo para todo o país. Sua voz reverberou daquela sala para a história. A depender do interlocutor, foi um estadista carismático que reacendeu o partido num discurso corajoso ou um cínico Macunaíma, criminoso e tergiversante. Fato é que saiu da PF direto para a sede do partido em campanha para 2018, convocando a militância.

    A condução coercitiva do ex-presidente, mais tarde alguém dirá nos rescaldos daquela tarde na rua Silveira Martins, teve algo de teste institucional e de opinião pública. A resposta das ruas ao apelo de Lula será absolutamente decisiva para seu destino: preso ou presidente. Para muitos, não parece haver outra opção. A sorte lançada no "All-In", raro testemunhar momento tão angular na trajetória de um mito.

    j. p. cuenca

    Escreveu até setembro de 2016

    É escritor. Foi selecionado em 2012 pela revista britânica "Granta" como um dos 20 romancistas brasileiros mais promissores com menos de 40 anos.

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