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    João Paulo Cuenca

    Hoje eu vou nadar

    25/03/2016 02h00

    Tenho fobia a hospitais. Lugar onde entramos sem saber se vamos sair. Quando visito o amigo internado –ou até um novo habitante deste mundo, na ala da maternidade –tenho uma fantasia recorrente que começa com um mal súbito, um tropeção, vertigem, dificuldade para respirar, talvez uma fisgada do lado errado do peito.

    Logo vejo um grupo de homens vestindo branco e mulheres de rabo-de-cavalo com máscaras cirúrgicas debruçadas sobre mim. Há certa confusão de movimentos e intenções, cujo centro deveria ser eu, mas já tratam de mim como se não estivesse mais lá. A identificação colada na minha camisa é trocada por uma pulseira de paciente.

    Observo as lâmpadas fluorescentes do teto e elas começam a deslizar para trás, como faixas brancas pintadas numa estrada -percebo que estou deitado numa cama sobre rodas. Ao longo do labirinto de corredores iluminados comum a todos os hospitais, deixo para trás a propriedade sobre o meu destino. Ou a ilusão desse controle.

    Indiferente a estas xaropadas, a maca atravessará uma sequência de portas duplas (há algo aqui da estrambólica abertura do seriado "Agente 86") até a sala de tratamento intensivo, outro umbral de onde muitos só conhecerão a porta de entrada. Sob os blips eletrônicos de aparelhos espetados nos corpos semi-vivos que visitam, os afortunados que estão de pé por ali sentem um incômodo difuso. Como diz o pássaro nos Quartetos de Eliot: a espécie humana não pode suportar muita realidade. Com a óbvia exceção de enfermeiros e alguns poucos poetas.

    Felizmente, o amigo que visitei sábado passado saiu da UTI no dia seguinte. O país é que talvez ainda esteja por lá.

    "O maior fanatismo surge quando você perde a fé", assim o Paroni resumiu a conversa que tivemos na sala de internação, ao lado de alguns senhores que já não estão mais neste mundo. Em março de 2016, o que une o Brasil é justificada descrença na política tradicional que traduz-se em espasmos histéricos entre o Sebastianismo e a Escatologia -escrevi pensando no termo bíblico, relacionado ao apocalipse, mas compreendo quem quiser incluir a acepção coprológica do termo.

    Eu misturaria as duas imagens, inclusive: um Dom Sebastião todo cagado, com merda escorrendo da cabeça aos pés. Na verdade dois, marchando em dias diferentes. Ambos sobre o mesmo terreno estéril e baldio, sem futuro, arrastando multidões de sísifos sem qualquer heroicidade, usando antolhos com certo ar infantil, erguendo bonequinhos e bandeirinhas.

    Há um trecho muito famoso do diário de Kafka –só Vila-Matas já deve tê-lo citado trinta vezes –em que o escritor tcheco meursaultianamente escreve, no dia 2 de agosto de 1914: "Hoje, a Alemanha declarou guerra à Rússia. De tarde, fui nadar."

    Acho que hoje eu vou nadar.

    j. p. cuenca

    Escreveu até setembro de 2016

    É escritor. Foi selecionado em 2012 pela revista britânica "Granta" como um dos 20 romancistas brasileiros mais promissores com menos de 40 anos.

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