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    João Paulo Cuenca

    Os Bestializados

    29/03/2016 02h00

    No dia 15 de novembro de 1889, Aristides Lobo escreveu sobre o golpe militar frio que ficou conhecido como a Proclamação da República: "O povo assistiu àquilo bestializado, atônito, surpreso, sem conhecer o que significava. Muitos acreditaram seriamente estar vendo uma parada. Era um fenômeno digno de ver-se."

    O dramaturgo Arthur Azevedo também viu o cortejo militar: "Os cariocas olhavam uns para os outros pasmados, interrogando-se com os olhos, sem dizer palavra. Na Rua 1º de março a passeata desfilou em silêncio, com Deodoro tentando manter-se ereto na sela e apresentando sintomas de recrudescimento de sua doença cardíaca."

    O que o povo assistiu foi uma parada militar com algumas centenas de soldados e a tomada de poder por um distraído marechal com dispnéia. Deodoro da Fonseca, cuja intenção em por-se à frente da quartelada era inicialmente derrubar o Ministério do Visconde de Ouro Preto, gritou ao entrar no prédio do governo no mesmo dia 15 que hoje celebramos: "Viva sua Majestade, o Imperador!"

    Fonseca acabou derrubando algo mais que o gabinete, numa trama confusa, cheia de boatos, rixas pessoais, lances de improviso e até ciúmes - Baronesa de Triunfo, onde estaríamos sem ela? Talvez o lacerdismo tenha sido inventado ali, nas intrigas palacianas que alimentaram a queda do Império, entre maçons, padres, editores de jornal (depois seriam censurados), milicos e escravocratas frustrados.

    No dia mesmo da "proclamação", Aristides Lobo escreveu: "Mas voltemos ao fato da ação ou do papel governamental. Estamos em presença de um esboço, rude, incompleto, completamente amorfo." Lobo foi Ministro do Interior do governo provisório de Marechal Deodoro por apenas dois meses. Rompeu com uma república investida de poderes ditatoriais, especialmente preocupada em manter os privilégios dos oligarcas brasileiros.

    O "esboço rude e incompleto" duraria mais tempo do que poderia imaginar: nossa república (do latim, res publica: coisa pública) jamais teria o bem comum sobreposto ao privado.

    Difícil não pensar na população e nas ruas do Rio de Janeiro e de Brasília, já prevista no artigo 3º da constituição de 1891. Os valores ligados à ascensão da república moderna - igualdade entre cidadãos, justiça para todos, liberdades civis, capitalismo - jamais foram encontrados na nossa primeira capital republicana e muito menos na segunda. Ambas vitrines socialmente hierarquizadas, a primeira envenenada por raízes escravocratas, a segunda nascida sob o signo da burocracia estatal.

    Passadas doze décadas, mantêm-se o fosso entre república e cidadania no Brasil. A população deseducada, os acertos do poder fora de seu alcance e compreensão. Tirando breves solavancos, a República Velha e seu apreço aos donos da terra e do dinheiro parecem mais vivos que nunca. Nas estranhas deste e de qualquer governo viável estará ainda o PMDB e seu coronelismo eletrônico. (Favor me acordar caso aconteça algo diferente disso nos próximos meses ou anos.)

    No entanto, há de se admitir grande diferença em relação aos brasileiros calados do final do século XIX: hoje temos a impressão de que podemos mudar alguma coisa. Nós, os bestializados, há tempos não assistimos mais de fora as paradas - militares ou não.

    j. p. cuenca

    Escreveu até setembro de 2016

    É escritor. Foi selecionado em 2012 pela revista britânica "Granta" como um dos 20 romancistas brasileiros mais promissores com menos de 40 anos.

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