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    João Paulo Cuenca

    Deixem o Dr. Bacamarte em paz

    05/04/2016 02h00

    Em tempos de conjeturas e invenções, o homem costuma voltar-se à história e usar os nomes de seus protagonistas em vão. É o que tem acontecido com o Dr. Simão Bacamarte, primeiro médico brasileiro a dedicar-se às moléstias cerebrais nas últimas décadas do século 18. Ao contrário do boato que corre, e boato duvidoso, o Dr. Bacamarte não virou juiz de direito e muito menos herói de ninguém. Hipócrates forrado de Catão, o alienista jamais viu-se seduzido pela frivolidade de um fórum de justiça e muito menos pela vaidade da toga. Não era um cientista dado à apetites vulgares.

    Aos que conhecem a acidentada história deste pioneiro, cujo resumo aqui tentarei esboçar, peço que pulem aos últimos parágrafos.

    Segundo o cronista mais célebre da vila de Itaguaí e das demais povoações da colônia, o Dr. Bacamarte foi o fundador do primeiro hospício da cidade, a Casa Verde. Tamanha era a quantidade de deserdados do espírito nas ruas, que apenas quatro meses após sua inauguração a casa precisou de novas galerias. Aos poucos, o alienista, como ficou conhecido, lançou terror à alma do povo. Conforme a autoridade decidia pela internação de cidadãos tidos como perfeitamente saudáveis, crescia a agitação popular. "A Casa Verde é um cárcere privado", acusavam médicos sem clínica.

    A revolta dos Canjicas, liderada pelo barbeiro Porfírio Neves, aliciou parte da cavalaria do exército, derrubou a Câmara e prendeu seus vereadores. O governo revolucionário logo caiu e outro conspirador assumiu o poder, João Pina, também barbeiro de profissão. Nisto entrou na vila uma força mandada pelo vice-rei, e restabeleceu a ordem. O alienista, tomado de furor jacobino, exigiu a entrega dos rebeldes, de vereadores da oposição, do presidente da Câmara e de uns quantos outros que declarou mentecaptos. No máximo de seu poder, mandou também recolher à Casa Verde seu grande aliado, o boticário Crispim Soares, e a própria mulher, D. Evarista.

    Sucediam-se as versões populares para os desmandos de uns e de outros. Naquele tempo, Itaguaí não dispunha de imprensa e tinha dois modos de divulgar uma notícia: ou por meio de cartazes manuscritos e pregados na porta da Câmara e da matriz, ou por meio de matraca. (Contratava-se um homem para andar as ruas do povoado, com uma matraca na mão. De quando em quando tocava a matraca, reunia-se gente, e ele anunciava o que lhe incumbiam: um empreendimento imobiliário, um donativo eclesiástico, a abertura de um comércio etc.)

    A crise de Itaguaí pareceu terminar quando, tendo já aposentado quatro quintos da população na Casa Verde, o alienista mandou libertar seus pacientes através de surpreendente ofício expedido à Câmara. Como a maioria da população estava internada, o que deveria se admitir como normal e exemplar era o desequilíbrio mental. E como hipóteses patológicas todos os casos em que aquele equilíbrio fosse ininterrupto, concluiu o Dr. Bacamarte.

    Autorizado o alienista a recolher na Casa Verde os que se achassem no gozo do perfeito equilíbrio das faculdades mentais, ao cabo de cinco meses estavam alojadas umas dezoito pessoas. O maior dos médicos do Brasil tratava-os segundo suas enfermidades. Fez-se uma galeria de tolerantes, outra de honestos, outra de sinceros etc. Prescrevia para cada um a medicação que pudesse incutir-lhe o sentimento oposto. Curava a modéstia com diplomas ou distinções honoríficas, por exemplo. Outros, como poetas, curou mandando correr matraca, espalhando inverdades.

    ESVAZIOU-SE A CASA VERDE

    Pouco tempo depois, esvaziou-se a Casa Verde: todos de volta à normalidade, menos o doutor.

    Simão Bacamarte achou em si os característicos do perfeito equilíbrio mental e moral; pareceu-lhe que possuía a sagacidade, a paciência, a perseverança, a tolerância, a veracidade, o vigor moral, a lealdade, todas as qualidades enfim que podem formar um acabado mentecapto. Assim, fechou-se no hospício e entregou-se ao estudo e à cura de si mesmo. Seu maior biógrafo conta que morreu dali a dezessete meses, no mesmo estado em que entrou, sem ter podido alcançar nada.

    Outros cronistas relatam que o alienista sobreviveu a seus contemporâneos. Ao contrário do que dizem os vigários maldosos, nunca foi ao sul do país. Depois de longo repouso, teria saído da Casa Verde em segredo, apenas à cata de outros como ele. Ao longo dos séculos, não os encontrou.

    Raro espírito, preocupava-se cada vez mais em manter a lucidez. Se a Câmara de Itaguaí pouco mudou de mãos desde o Império, o Dr. Bacamarte teria visto a matraca evoluir para o rádio e a TV, os cartazes para jornais e revistas, o nascimento da comunicação de massa e uma soma de tudo isso no fenômeno extraordinário da internet. Em algum ponto de sua travessia pelo tempo, já apartado de sua rica biblioteca, o alienista distraiu-se com manchetes (há quem insinue que foi um meme ou corrente de WhatsApp) e nunca mais achou o caminho de volta para Itajaí.

    A Casa Verde segue completamente vazia.

    j. p. cuenca

    Escreveu até setembro de 2016

    É escritor. Foi selecionado em 2012 pela revista britânica "Granta" como um dos 20 romancistas brasileiros mais promissores com menos de 40 anos.

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