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    João Paulo Cuenca

    O procedimento do terror

    12/04/2016 02h00

    Acaba de sair pela editora argentina Eterna Cadência, "Las tres vanguardias. Saer, Puig, Walsh". O livro traz a transcrição das conferências que Ricardo Piglia deu na Universidade de Buenos Aires em 1990. Ele usa os três escritores como pedra de toque para discutir o romance literário contemporâneo e sua relação com o leitor, a política –e o Estado.

    O jornal "La Nacion" adiantou um trecho do livro, justamente o que trata das ideias de Piglia sobre o Estado como construtor de ficções. Se um dos níveis fundamentais da relação social é a narração –estamos todos tecendo narrativas o tempo inteiro, é uma obrigação social–, o escritor chama de "narrativa pública" ao relato coletivo cristalizado. E propõe a hipótese de que o Estado sempre irá engendrar uma ficção tentando concentrar essa narrativa.

    No Brasil de 2016, tal ficção do Estado é dramaticamente contraposta a outras, traçadas por agentes que querem "ser" Estado no momento seguinte. O Estado seria, portanto, o sol em torno do qual orbita essa trama aparentemente infindável de narrativas contraditórias.

    Piglia cita Paul Valéry, na "Política do espírito": "A era da ordem é o império da ficção. Nenhum poder é capaz de sustentar-se apenas com a opressão do corpo a corpo. São necessárias forças fictícias." E junta ao caldo as ideias da "Teoria do romance" onde Lukáks define o gênero literário como a unidade impossível entre dois mundos irreconciliáveis –o possível e o utópico, o real e o ilusório, a vida e o sentido.

    O herói do romance, portanto, seria o sujeito insatisfeito que está no meio, tentando passar de um lado ao outro e sempre fracassando.

    O HERÓI DO ESTADO

    Para Piglia, o Estado faz o mesmo que o romance ao trabalhar a relação entre o ideal e a realidade, mas de um modo inverso. O herói do Estado é aquele que diz: precisamos baixar nossas expectativas ideais por causa do peso do real, há limites, "restrições orçamentárias", "a bancada ruralista" etc.

    Piglia usa uma frase que Perón teria roubado de Aristóteles para justificar um aumento de preços em 1948 como paradigma dessa tensão entre o ideal e o real: "a única verdade é a realidade". Eu poderia oferecer exemplo menos tautológico, a "Carta aos brasileiros" de Lula, em 2002.

    Piglia nos escreve desde a Argentina no início dos anos 1990, quando Menem centralizava essas narrativas de forma folhetinesca, então com o suporte total do grupo Clarín. "Menem é o herói trágico destinado a ser liquidado pela descrição do que ele mesmo propõe como futuro. O herói de uma narrativa cujo final trará uma sociedade na qual um sujeito como Menem não poderá ter lugar."

    No entanto, o herói do romance de ficção não é como Perón, Lula ou Menem. É bem o contrário, já que precisa encontrar um ideal que dê sentido ao real. Muitas vezes o ideal só vale para um Quixote, ainda que a seus leitores desmascare a ficção do Estado –e também a de quem se costuma se contrapor a ele.

    O que interessa a Piglia nessa parte do ensaio é a tensão entre essa "trama de narrativas que circulam" no campo do imaginário coletivo e as formas literárias assumidas pelo romance. Para ele, o gênero seria, desde sua origem, uma resposta formal a demandas propostas pela sociedade.

    E o que me interessa quando abro o jornal na tarde do discurso "vazado" de Michel Temer e leio que, no mesmo dia em que um homem ateou fogo a si mesmo diante do Palácio do Planalto, um grupo de presidiários ergueu um muro de dois metros de altura dividindo a Esplanada dos Ministérios em Brasília Oriental (vermelhos) e Ocidental (amarelos), é outra hipótese do escritor argentino: "Numa sociedade é muito importante o que ainda não é, o que não existe, aquilo do que se fala –seja porque não se quer que exista ou porque se quer. Esse lugar é o lugar da utopia, mas também o do procedimento do terror".

    Essa tensão entre o discurso do possível e seu antagônico, proposto como utopia, define o romance de ficção. E marca também o discurso que alimenta o temor ao futuro, construído sobre a ameaça de que ele pode ser igual ao passado –ou muito diferente dele, a depender do lado do muro.

    j. p. cuenca

    Escreveu até setembro de 2016

    É escritor. Foi selecionado em 2012 pela revista britânica "Granta" como um dos 20 romancistas brasileiros mais promissores com menos de 40 anos.

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