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    João Paulo Cuenca

    A feira do rolo

    15/04/2016 02h00

    Tenho duas amigas que moram num apartamento de segundo andar no largo do Paissandu, com balcão e vista privilegiada para a copa das árvores e para a Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, que domina a paisagem por trás de um ponto de ônibus recém-construído.

    Enquanto comemos pudim com colherzinha e tomamos o chá da tarde, observamos o trottoir das prostitutas que tentam laçar clientes com assovios e, ao anoitecer, na esquina com a rua Capitão Salomão, a Feira do Rolo - assim, em maiúsculas, para consagrar a tradição.

    Visto de cima, o Rolo é um denso círculo composto por homens erguendo tênis de corrida, camisetas, casacos, bicicletas, telefones celulares, controles remotos e outras bugigangas enquanto compradores passam entre eles em zigue-zague. É uma dança de passinhos curtos. Se você olhar direito, os compradores também têm coisas à venda. E aí rola o Rolo. Com grana ou por meio da ancestral prática do escambo.

    É quase tudo roubado. De vez em quando, a PM passa e revista os que parecem mais pretos, pobres e mulatos –e também os quase brancos quase pretos de tão pobres. Quando o carro vai embora, levando um ou outro, o Rolo continua na praça. Às vezes, por motivos de sirene, muda de lugar. Essa semana rolou na esquina da praça com a São João.

    Tudo isso acontece sempre ao redor da Igreja dos Homens Pretos, monumento cuja história remonta ao século 17. O primeiro templo consagrado a essa ordem foi construído em São Paulo por negros escravos e alforriados que não podiam frequentar as igrejas dos brancos. Ela é símbolo de fé e de resistência afro-brasileira.

    OUTRA FEIRA

    Nesse final de semana, uma outra Feira do Rolo vai bombar, com o mesmo ziguezaguear e oferta de produtos. Também organizada num círculo, este um pouco maior: o Congresso Nacional, em Brasília. Como na Feira do Rolo que vejo pela janela, o que se negocia ali é roubado. Roubado principalmente dos pretos, pobres e mulatos que frequentam o Rolo do largo do Paissandu.

    Um Rolo parece puro e inocente comparado ao outro. Além da diferença de ares, banquete e impunidade no Planalto Central versus medo e penúria na calçada da praça, há outra discrepância, bastante mais evidente. Dos 513 deputados federais eleitos para a Feira do Rolo Federal em 2014, 22 se declararam pardos ou negros, apenas 4,3% do total. No mesmo ano, 53% da população brasileira se declarou parda ou negra, segundo o IBGE.

    A Igreja dos Homens Pretos foi erguida há quase três séculos. Resta saber quando o Congresso dos Homens Pretos será construído na Capital Federal. Sem ele, não há esperança de paz e justiça para nenhum de nós. Sem ele, o Brasil simplesmente não é possível.

    j. p. cuenca

    Escreveu até setembro de 2016

    É escritor. Foi selecionado em 2012 pela revista britânica "Granta" como um dos 20 romancistas brasileiros mais promissores com menos de 40 anos.

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