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    João Paulo Cuenca

    Vamos supor, apenas supor, que eu tenha sido preso

    05/08/2016 07h52

    J.P.Cuenca
    J.P.Cuenca durante sua viagem pela Polônia
    J.P.Cuenca durante sua viagem pela Polônia

    Vamos supor, apenas supor, que eu tenha sido preso injustamente numa pequena cidade polonesa. Eu teria ficado incomunicável numa cela de custódia sem janelas, quente como uma sauna, junto a outros bêbados e criminosos.

    Também podemos supor que não tenham me deixado telefonar para ninguém, o que teria me deixado sem saber quando seria liberado. Felizmente, teriam sido apenas 12 horas.

    Isso teria acontecido enquanto eu estivesse na Polônia justamente para exibir um filme muito influenciado pelas narrativas de confinamento presentes no cinema polonês, por exemplo Roman Polanski (espaço) ou Krzysztof Kieślowski (destino).

    Como os acontecimentos são justamente o que fazemos deles, eu teria aproveitado esse tempo tentando escrever um ensaio mental que expusesse a ironia de estar preso justamente nessa cicatriz da Europa. E teria lembrado do Waly e do Antônio Cícero do meu último texto na Folha.

    O esforço para não quebrar mentalmente seria grande –estar preso, e sem saber até quando, é absurda prova de resistência não contra as paredes da cela, mas contra si mesmo. Sem telefone ou alguém que falasse uma língua em comum, a solidão extraordinária da cela de custódia em país estrangeiro abriria uns caminhos estranhos para planos futuros ("se um dia sair daqui, finalmente serei uma pessoa melhor" etc.) e certa consciência de outras prisões, mais dissolvidas no horror do cotidiano –e eu aqui não quero citar Michel Foucault, mas apenas dizer que é impossível fugir de uma prisão criando outra.

    No entanto, é o que fazemos o tempo inteiro. Civilizações, países, partidos políticos, famílias, identidades –tijolos, blocos de concreto, cartas ou bandeiras que carregamos nas costas até o alto da montanha, não para deixá-las cair como Sísifo, mas para nos transformarmos nelas.

    Profundamente acordado na cela, o esforço maior do cara deitado numa maca de concreto seria justamente não acreditar, não respeitar, não reconhecer nada disso.

    j. p. cuenca

    Escreveu até setembro de 2016

    É escritor. Foi selecionado em 2012 pela revista britânica "Granta" como um dos 20 romancistas brasileiros mais promissores com menos de 40 anos.

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