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    João Pereira Coutinho

    Burgueses e artistas

    DE SÃO PAULO

    14/05/2013 03h04

    Vive como um burguês para que possas reservar toda a radicalidade para a tua arte. Eis o espírito de uma conhecida frase de Flaubert. Haverá conselho mais sábio para qualquer artista ou candidato a? Duvido. Ele transporta duas grandes verdades --e uma grande inferência.

    Comecemos pelas verdades. Não existe arte, grande arte, sem ordem, grande ordem. Não falo apenas de um mínimo de ordem pessoal, embora isso ajude: escreve-se melhor quando não existe a angústia suplementar de não haver dinheiro para pagar o uísque das crianças.

    Mas também se escreve melhor quando não existe a angústia suplementar de podermos ser perseguidos, presos ou mortos. Exceções?

    Sempre houve: casos pungentes de criatividade humana no meio do lodaçal. Mas quem deseja ser essa exceção?

    Como dizia o estimável Saul Bellow, eu não conheço o Tolstói dos zulus. Ou o Proust do Sudão. Ofensivo, dizem as brigadas politicamente corretas. Pena que não apresentem esse Tolstói ou esse Proust. Sem provas, ofensiva é a inteligência das brigadas.

    Os artistas "boêmios", ou pretensamente "boêmios", só marcham contra a civilização burguesa precisamente porque existe uma. Sem uma civilização burguesa, o lugar deles era a irrelevância, o anonimato ou coisa pior.

    E não existe imagem mais patética do que ver o ódio do artista rebelde contra o exato mundo burguês (ou capitalista, tanto faz) que sustenta e promove a sua rebeldia. Flaubert, que nunca morreu de amores por esse mundo, teve pelo menos a honestidade de expressar a sua ambivalência perante ele.

    Mas a frase de Flaubert transporta uma segunda verdade: é a tua arte que conta, não a tua vida. É a arte que deve ser julgada, não a tua relação problemática com o sabão ou com as maneiras.

    Anos atrás, lembro-me de um velho professor de estética que me contava, maravilhado, que a primeira vez que conhecera o grande escritor e artista português Almada Negreiros, o autor estava sentado no sofá da sala, assistindo ao noticiário, como qualquer "pater familias" depois de mais um dia de labuta.

    Almada, o modernista Almada, o futurista Almada, que pintou Fernando Pessoa e deixou "Nome de Guerra", um dos mais primorosos textos do século 20 lusitano --de pantufas em casa! Quem nunca escreveu de pantufas, ou de robe, ou até de pijama, não pode saber o que existe de conforto espiritual no exercício. Recomendo, recomendo.

    E recomendo uma inferência suplementar a partir de Flaubert: se não fores um gênio, não te esforces tanto por parecer um. Os gênios não se esforçam. Eles são. A essência precede a aparência, não o contrário. Quando se começa pelo fim, normalmente é porque não há grande coisa no princípio.

    Conheço casos. Gente que acredita que a ausência de um livro recomendável, de um quadro recomendável ou de um filme recomendável pode ser compensada com a pose certa de escritor, pintor ou cineasta.

    Não pode, meu bem. Quando não existe obra digna desse nome, não é boa ideia uma pessoa apaixonar-se pelo próprio nome. Até porque há paixões que podem não ser correspondidas.

    É por isso que o destino usual do artista falsamente inusual é um poço de ressentimentos. Ou, melhor dizendo, a exigência infantil de que o mundo em volta reconheça o tamanho do seu ego. Risível. Não é o ego que tem de ser grande. É a obra. Sempre a obra. Só a obra.

    Vive como um burguês para que possas reservar toda a radicalidade para a tua arte. Que o mesmo é dizer: abandona a tua pose no latão de lixo. Não simules conhecimento que não tens. Aprende com quem sabe. Não queiras ser "transgressivo" na tua vida. Aprende primeiro a usar os talheres. E quando quiseres ser "transgressivo", vai lavar os pratos (e os talheres). Isso passa.

    Não esperes que o mundo se curve à tua passagem. És tu que te deves curvar à passagem do mundo. E antes de abrires a boca para te rires do que não entendes nem és capaz de fazer --"Woody Allen está a ficar repetitivo, não?"--, cala a boca, ri de ti próprio e pergunta quando foi a última vez que fizeste um filme razoavelmente decente. Ou um romance. Ou um quadro.

    E se achares que já fizeste esse filme, ou esse romance, ou esse quadro, então esquece. Podes ir buscar a tua pose no fundo do latão.

    joão pereira coutinho

    Escritor português, é doutor em ciência política.
    Escreve às terças e às sextas.

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