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    João Pereira Coutinho

    Woody, Philip & Robert

    10/02/2014 13h15

    1.

    Meses atrás, lendo uma matéria na "Vanity Fair" sobre Mia Farrow, encontrei o maior assassinato de reputação do jornalismo moderno. Porque a matéria não era sobre Mia Farrow; antes sobre Woody Allen e os alegados abusos sexuais que o diretor teria cometido sobre Dylan, filha adoptiva de ambos, quando esta tinha 7 anos de idade.

    Cancelei a assinatura da "Vanity Fair" (sem hesitações): quando estourou o escândalo do envolvimento de Allen com Soon-Yi em 1992 (ambos adultos e, ao contrário do que se pensa, Soon-Yi não era filha de Allen), vários médicos analisaram Dylan e não encontraram os abusos sexuais de que Woody Allen era acusado. Em quem acreditar?

    Talvez nas evidências empíricas: entre as acusações de uma mulher ressentida e a experiência de médicos no assunto, a minha cabeça balança para os segundos. Fim de história? Longe disso. A própria Dylan, hoje com 28 anos, escreveu uma carta ao "New York Times" onde repete as acusações, mais de duas décadas depois. Woody Allen responde, negando os crimes e lamentando a lavagem cerebral que a filha sofreu da mãe na infância. Um dos irmãos de Dylan, Moses, também defende Woody Allen das predações de Mia Farrow.

    No circo de lama que se instalou em Nova York, a grande questão é óbvia e inevitável: se o pior dos cenários fosse verosímil - Woody Allen como um abusador da própria filha - isso o desqualificava como director e escritor de gênio?

    Responder negativamente à questão talvez faça de mim um pária entre a turma dos indignados, para quem a obra de um artista depende sempre de uma conduta pessoal imaculada.
    Discordo. Se o pior dos cenários fosse verosímil (e, para mim, não é), isso não faria de Woody Allen um péssimo diretor. Apenas um abominável pai e um vulgar criminoso.

    2.

    Os cinéfilos são gente egoísta. Quando soube da morte de Philip Seymour Hoffman aos 46 anos, não pensei nos filmes que ele fez. Pensei nos filmes que ele jamais fará.

    Eis a dimensão da perda: se fosse outro ator a ser derrubado por "overdose", não haveria esse roubo do futuro que Hoffman representa. Mas, com ele, a sinfonia era distinta: Hoffman não era apenas o mais brilhante ator da sua geração; era, como afirma Caden Cotard, criação sua em "Sinédoque, Nova York", o mais verdadeiro e brutal.

    Talvez por isso "Sinédoque", filme de Charlie Kaufman, seja o maior de todos os seus papéis - e, arrisco dizer, um dos maiores de sempre na história da arte.

    Sim, eu sei: críticos diversos preferem "O mestre" de Paul Thomas Anderson; a exibição de virtuosismo técnico em "Capote", que lhe valeu o Oscar em 2006; ou até o inesquecível Sandy Lyle, um ex-ator adolescente (e para adolescentes) que conseguia ser tão hilariante em "Quero Ficar com Polly" que o filme só vale mesmo por ele.

    Mas "Sinédoque" é a materialização de um abismo a que só Seymour Hoffman era capaz de dar corpo. E "corpo" é a palavra: o seu Caden Cotard é um dramaturgo neurótico e hipocondríaco, prematuramente envelhecido, que após receber um prémio generoso decide construir uma peça de teatro capaz de revelar a vida como ela é. Na sua banalidade; nos seus dramas domésticos; nas suas alegrias efémeras; nos seus terrores humanos e comuns.

    Uma odisseia lunática que lhe consome os melhores anos e que, sem surpresas, termina como termina a vida: em fracasso e esquecimento; mas também com a certeza desencantada de que este é o único palco que temos. E que somos nós os protagonistas da nossa própria peça e os autores da nossa própria história.

    Assistindo de novo a "Sinédoque", foi impossível não escutar cada palavra de Philip Seymour Hoffman como a nota de despedida que ele nunca escreveu.

    3.

    O mar, o mar: haverá metáfora mais perfeita sobre as provações que aguardam a soberba humana? Joseph Conrad sabia do assunto e a sua novela, "The Shadow-Line", é leitura obrigatória para gente demasiado apaixonada por si própria. Porque todos somos como o jovem capitão da história antes de iniciar viagem: pateticamente confiantes na nossa autossuficiência.

    Pena que o mar não se impressione com tais vaidades. E que resolva despertar de vez em quando para relembrar aos homens a pequenez de que somos feitos e desfeitos.

    Eis, em resumo, a história de "All is Lost", filme notável de J.C. Chandor: um homem sem nome sofre acidente irreparável no seu barco. Só, radicalmente só na imensidão do Índico, o filme é um quase-documentário sobre a vontade de sobrevivência desse homem.

    E, ao leme das operações, está Robert Redford, que Hollywood esqueceu nas indicações para o Oscar. Nenhum drama: ganhe quem ganhar, daqui a uns anos já teremos esquecido o vencedor de 2014. Nunca mais esqueceremos Robert Redford: o olhar e o silêncio de alguém para quem tudo está perdido.

    joão pereira coutinho

    Escritor português, é doutor em ciência política.
    Escreve às terças e às sextas.

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