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    João Pereira Coutinho

    Cortar a direito

    24/02/2014 05h30

    Viver em sociedades liberais e pluralistas tem o seu encanto. Quem, em juízo perfeito, não gosta de odes apaixonadas a valores como a "liberdade", a "diversidade" e a tolerância?

    O problema é que esses valores, normalmente, só funcionam entre pessoas civilizadas, capazes de partilhar um "modo de vida" onde a crueldade e a humilhação não têm lugar.

    De que vale sermos tolerantes com os intolerantes? E de que vale respeitar a diversidade quando essa diversidade pode incluir a violência contra mulheres, minorias —e, no geral, contra qualquer criatura branca (ou negra) que não obedece aos mesmos preceitos religiosos?

    A revista "Standpoint", editada pelo excelente Daniel Johnson (filho do historiador Paul Johnson), lembrou recentemente alguns números que só podem deixar um cidadão em estado catatónico.

    No Quénia, 97% das moças são submetidas à nobre prática da mutilação genital feminina — um procedimento bárbaro que, na maioria dos casos, implica a remoção do clitóris, essa fonte de prazeres demoníacos. Na Somália, o número sobe para 98%. No Egipto, apesar de tudo, o pessoal é mais moderado: 94%.

    Perante esses números, o multiculturalista demente dirá que devemos "respeitar" a diferença e "tolerar" certas culturas sem necessariamente as julgar de acordo com os nossos valores "imperialistas" e "eurocêntricos".

    Com a devida vénia ao multiculturalista demente, eu ainda não atingi esse estado "zen" em que a mutilação de uma mulher é a expressão legítima de uma cultura diferente da minha. Não respeito nem tolero.

    O que não significa que, na melhor tradição neoconservadora, esteja disposto a invadir o Quénia e a Somália para salvar os clitóris da população feminina local. O mundo sempre foi um cortejo de horrores. O reconhecimento desse facto já é um princípio de sanidade.

    Mas o que dizer da mutilação genital feminina praticada no Ocidente? Praticada em Inglaterra?

    Informa a mesma "Standpoint" que, de acordo com um relatório recentemente apresentado no Parlamento britânico, os casos quase triplicaram em uma década. Passaram de 65 mil para 170 mil.

    Claro que a Inglaterra ainda é um Estado de Direito e o crime costuma dar 14 anos de prisão. Pena que ninguém tenha sido julgado ou condenado por ele.

    Coisa espantosa: milhares de mulheres foram mutiladas nos últimos anos em Inglaterra. Mas a ignorância e a inoperância policial e judicial não encontraram um único culpado. Será que as mutilações ocorreram por geração espontânea?

    A julgar pela forma como o assunto é tratado pela "intelligentsia" inglesa, parece que sim: o raciocínio que se aplica ao Quénia e à Somália também é válido para as mulheres de Londres, Manchester ou Liverpool. Quem somos nós para condenar as tradições dos outros?

    Uma pergunta generosa que, no futuro, poderá dar lugar a outra: por gentileza e hospitalidade, não devemos também sujeitar-nos a tais práticas para que os selvagens não se sintam "discriminados" na sua selvajaria?

    Pense nisso, leitora: entre o pecado da intolerância e a integridade do clitóris, há momentos em que é preciso cortar a direito.

    joão pereira coutinho

    Escritor português, é doutor em ciência política.
    Escreve às terças e às sextas.

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