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    João Pereira Coutinho

    Os vivos e os mortos

    15/04/2014 03h00

    1. Inevitável: os esforços de John Kerry para resolver o conflito israelense-palestino prometem terminar em pizza. Motivos?

    Os habituais: Israel continua a construir os seus assentamentos na Cisjordânia; Israel não liberta das suas prisões um número suficiente de terroristas; Israel já não acredita na solução dos "dois Estados" — uma solução que, recorde-se, tem sido sucessivamente proposta, e sucessivamente recusada pelos árabes, há pelo menos 80 anos, ainda durante o mandato britânico da Palestina.

    Mas uma história quase anedótica talvez ajude a explicar realmente por que motivo a paz entre judeus e árabes não será para o nosso tempo.

    Aconteceu com o palestino Mohammed S. Dajani: conta o "The Washington Post" que o professor Dajani decidiu fazer uma viagem de estudo com os seus 27 alunos a Auschwitz —o mais brutal de todos os campos de extermínio nazistas, onde foram assassinados 1 milhão de judeus durante a Segunda Guerra.

    A viagem fazia parte de um projeto acadêmico do professor Dajani, destinado a promover valores perigosíssimos como a "empatia" e a "tolerância".

    Infelizmente, o professor Dajani não mediu bem as consequências dos seus atos e, de volta à Cisjordânia, foi repreendido pela universidade, rotulado de "traidor" pelos colegas —e os amigos, preocupados com a sua integridade física, aconselharam-no a tirar férias e, digamos, a desaparecer por uns tempos. Surreal?

    Não, se tivermos em conta que filmes subversivos como "A Lista de Schindler" continuam banidos em muitos Estados árabes e que o "Mein Kampf" de Hitler continua a fazer sucesso comercial e "científico" em muitos desses países.

    Esperar que exista paz e reconciliação entre judeus e árabes —ou, para usar as palavras do professor, "empatia" e "tolerância"— quando uma das partes considera o Holocausto um insulto para os palestinos é como acreditar em fadas e duendes: bonito, em teoria; insano, na prática.

    2. Não existe filme mais angustiante que "Solaris", um clássico de Tarkovsky que teve "remake" tolerável de Steven Soderbergh. É a história de um psicólogo que é enviado de emergência para uma estação espacial porque a tripulação revela sinais de loucura sem motivo aparente.

    O psicólogo parte para o espaço e finalmente entende por que motivo a saúde mental da tripulação está em derrocada: sob a influência do planeta Solaris, é possível aos vivos voltar a ver e conversar com os seus mortos.

    A ideia pode parecer uma materialização feliz da mais generosa promessa de eternidade: um dia voltaremos a reencontrar quem partiu, como se a morte fosse apenas uma despedida temporária.

    "Solaris" inverte as premissas desse raciocínio para mostrar que existem coisas piores que o luto. É a impossibilidade de o fazermos. É estarmos condenados a conviver com fantasmas, desejando que eles sejam reais, e por isso incapazes de nos despedirmos deles por fraqueza ou amor ou egoísmo.

    Lembrei-me de "Solaris" quando soube, dias atrás, que já existe uma empresa on-line disposta a oferecer versões computadorizadas dos nossos mortos mais queridos. A empresa intitula-se Eterni.me e o conceito é simples: depois do óbito, são recolhidas todas as informações —físicas, mentais, comportamentais— do morto.

    Depois, o morto regressa do Além para uma tela de computador —um "avatar", digamos— pronto para comunicar conosco.

    Em artigo para o "Guardian", a colunista Lucy Cosslett mostra o seu ceticismo ao afirmar o óbvio: uma pessoa nunca poderá ser reduzida a uma coleção de dados de computador. Uma pessoa é, pelo contrário, tudo aquilo que escapa a um computador —um ser único e irrepetível, dotado de virtudes e vícios que marcam indelevelmente as nossas existências.

    Mas o problema central do macabro projeto nem sequer está nas limitações dele. Está na ambição doentia de negar a morte através de um simulacro de vida.

    Respeitar os mortos é, antes de mais, respeitar os vivos. E a única forma de nos respeitarmos —no fundo, de não enlouquecermos como a tripulação de Solaris— passa por aceitar a partida daqueles que, por fraqueza ou amor ou egoísmo, mais gostaríamos que ficassem.

    joão pereira coutinho

    Escritor português, é doutor em ciência política.
    Escreve às terças e às sextas.

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