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    João Pereira Coutinho

    Os macacos da vaidade

    13/05/2014 02h02

    Tenho os meus preconceitos como qualquer pessoa civilizada. Falo de preconceitos em sentido rasteiro, não em sentido conservador e clássico como o conjunto de tradições que sobreviveram aos "testes do tempo" e por isso mostraram a sua utilidade.

    Não gosto de senhoras que usam e abusam do calão (em público, não em privado). Considero o exibicionismo material —carros, joias, roupas de grife etc.— uma forma repugnante e subdesenvolvida de conduta, comparável a cuspir no chão, usar palito ou cutucar cera do ouvido.

    E tendo a manter uma distância higiênica de criaturas entre os 12 e os 17 anos, ou seja, membros desse lamentável período que designamos por "adolescência".

    Não sei se a velhice vai limar algumas dessas arestas. Por enquanto, os meus instintos preconceituosos são mais fortes do que eu.

    Mas existe um preconceito que, filosoficamente falando, sou incapaz de partilhar, sequer entender: o preconceito racial.

    A ideia de que a pigmentação da pele tem qualquer relevância moral ou epistemológica é-me tão incompreensível como exibir iguais preconceitos em relação à cor dos olhos ou à forma do cabelo (excetuando, claro, o caso perdido de Donald Trump).

    Sim, eu sei: estudiosos diversos afirmam que o racismo existe desde o início dos tempos, quando a sobrevivência das sociedades tribais implicava uma separação rigorosa entre os "nossos" e os "outros".

    Essa separação foi agravada com a escravidão e, na era contemporânea, com a psicose de pureza racial que o nazismo elevou a programa de extermínio político.

    Seja como for, a incompreensão mantém-se: imaginar que a pigmentação da pele tem importância moral ou epistemológica é um sintoma de primitivismo brutal.

    É por isso que aplaudo o atleta Daniel Alves, que, no momento do escanteio, pegou na banana que lhe foi jogada e a comeu com inteligência e naturalidade. O humor ainda é a melhor arma contra o mundo neolítico dos selvagens racistas.

    Mas confesso algum desconforto com a febre que o gesto do jogador provocou em todo o mundo, com dezenas de "celebridades" (grotesca categoria) exibindo bananas para as redes sociais e afirmando com orgulho que "todos somos macacos".

    Sobre a frase, nada a dizer: todos somos macacos mesmo, embora eu conheça alguns membros da espécie Homo sapiens que estão uns furos abaixo de alguns símios mais evoluídos. Entre a classe política, isso é verdadeiramente uma epidemia. "Todos somos macacos" pode ser ofensivo para certos macacos.

    Mas o que perturba na "macaquice viral" que tomou conta da internet é o que existe de vaidade nela: mostrar a banana e assumir a condição simiesca não é apenas um gesto de solidariedade para com Daniel Alves (o jogador não precisa desse paternalismo e lidou com o insulto na perfeição).

    O circo que foi montado em seu redor não passou de um pretexto para que os suspeitos do costume —cantores, atores, "famosos" e candidatos a isso— pudessem mostrar ao mundo o tamanho das respectivas tolerâncias.

    Alguns conhecidos meus, aliás, também cederam à tentação da vaidade: fizeram "selfies" com a inevitável banana e depois partilharam o feito glorioso nas redes sociais.

    Só para escutarem o aplauso geral que os "bons sentimentos" costumam receber quando exibidos em público.

    O mais irônico e o mais hipócrita de alguns desses casos é que eu sei perfeitamente quantos deles jamais veriam com naturalidade o casamento das filhas (brancas) com namorados (negros).

    Sem falar do número diminuto dos que tratariam candidatos (negros) a um emprego nas respectivas empresas em posição de igualdade com candidatos (brancos). Mostrar a banana é fácil. Difícil mesmo é mudar a cabeça de abóbora.

    Derrotar o racismo não passa por autorretratos narcísicos em que mostramos bananas como certos exibicionistas gostam de mostrar as partes íntimas na calçada.

    O racismo derrota-se quando deixamos de criticar relações inter-raciais nas costas dos amantes; ou quando tratamos brancos, negros, pardos ou amarelos com o mesmo respeito daltônico. Cotidianamente. E, sobretudo, anonimamente. Sem fazer propaganda.

    Os macacos da vaidade poderiam ter aprendido algo com Daniel Alves, recusando a vaidade e simplesmente comendo a banana.

    joão pereira coutinho

    Escritor português, é doutor em ciência política.
    Escreve às terças e às sextas.

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