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    João Pereira Coutinho

    Leis secas

    DE LONDRES

    14/07/2014 02h00

    Quem está cansado de Londres, está cansado da vida, dizia o Dr. Johnson. Talvez. No século 18. Hoje, penso no contrário: quem está cansado da vida, está cansado de Londres. Para um anglófilo como eu, escrever uma frase dessas é coisa grave e séria.

    Dias atrás, li nos jornais daqui que os londrinos tinham por hábito plantar cones de metal na entrada dos prédios, fazendo do chão autênticas camas de faquir. Tudo para impedir que os mendigos da cidade ali pudessem dormitar durante a noite. Boris Johnson, o "mayor" da cidade, ordenou a retirada desses objectos. Envergonhado. Enojado. Aplausos para Boris.

    Entendo que não é "agradável" (belo adjectivo) ter na entrada do prédio um infeliz que dorme entre cartões. Mas não deixa de ser uma experiência melancólica olhar para uma sociedade que humilha os mendigos como se eles fossem animais perigosos que é preciso afastar com armadilhas metálicas.

    Se uma coisa dessas acontecesse, sei lá, na Noruega, eu entenderia: parece que o país, agora, pretende criminalizar quem pede esmolas - a suprema forma de "fascismo social". Mas em Inglaterra? Um país que sempre teve um certo orgulho na defesa desse "live and let live" que encantava a minha costela libertária?

    Mas o caso dos mendigos não é sintoma único. Os cigarros, sempre os cigarros, também voltaram a assombrar os meus dias. Tudo porque a British Medical Association aprovou uma resolução pedindo ao governo para proibir a venda dos ditos cujos a todos aqueles que nasceram depois do ano 2000. O organismo pretende que a Inglaterra seja o primeiro país do mundo sem um único fumante em 2035, informa o "The Guardian".

    Entendo a ideia. Mas a ideia, obviamente, tem nome: "eugenia de Estado". Desistindo de todos os fumantes degenerados que nasceram antes de 2000 (e que é impossível fuzilar), a Inglaterra já só pensa nas gerações futuras: uma raça pura e sã, que faria as delícias de um certo cabo austríaco que os antigos fumantes do país ajudaram a derrotar entre 1939 e 1945, salvando as liberdades do reino.

    Felizmente, alguns membros da British Medical Association opuseram-se à ideia e relembraram duas verdades básicas.

    A primeira, evidente, é que a proibição do fumo não chega. Por motivos de coerência científica, seria preciso também criminalizar todas as substâncias - álcool, açúcar, sal etc. - que não contribuem para vidas longas e vigorosas. Estará o Parlamento disponível para essa "caça às bruxas" gastronómica?

    Por último, é preciso aprender alguma coisa com a Lei Seca dos Estados Unidos (1920 - 1933), quando as bebidas alcoólicas foram banidas no país. Resultado? O mercado negro floresceu como nunca - e, com ele, a criminalidade organizada para alimentar o vício.

    Porque esse é o problema central desses programas de "higienização" política: eles esquecem que os seres humanos não são seres virtuosos, que é possível "redesenhar" ou "reprogramar" para se atingir uma utopia sanitária qualquer.

    Somos seres limitados, viciosos, pecaminosos. E não existe legislação no mundo que altere a matéria imperfeita de que somos feitos e, às vezes, desfeitos.

    joão pereira coutinho

    Escritor português, é doutor em ciência política.
    Escreve às terças e às sextas.

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