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    João Pereira Coutinho

    Nada para ninguém

    14/10/2014 02h00

    Os meus amigos esquerdistas não concordam com a minha visão pessimista sobre a natureza humana. Demasiado Thomas Hobbes para eles.

    Preferem Jean-Jacques Rousseau e as piedades idílicas sobre o "estado de natureza", uma espécie de Disneylândia onde os homens eram naturalmente bons e não cobiçavam a mulher do próximo. Ou a macaca do próximo, melhor dizendo.

    Tento contra-argumentar. Não com filosofia. Com as questões mundanas da vida terráquea. Qualquer visão otimista sobre a natureza humana não sobrevive a meia hora de trânsito em Lisboa ou no Porto, onde entendemos claramente como a existência pode ser "pobre, feia e brutal".

    É por isso que raramente uso carro próprio. Prefiro táxis. Só para observar: motoristas animalescos que se insultam mutuamente e aproveitam qualquer pretexto para humilhar ou ganhar vantagem sobre terceiros.

    Certa vez, um deles chegou mesmo a confessar-me que o seu maior sonho era usar o taco de beisebol que trazia sob o assento só para "rebentar com as rótulas" de quem não respeita a sinalização.

    Quando penso no "estado de natureza", imagino um trânsito de fim de tarde, onde só não há mortos e feridos porque, algures na história, alguém inventou a polícia e a lei. No fundo, as instituições repressivas que tanto incomodavam Rousseau.

    Mas o trânsito não é a única escola naturalista. Existe outra, capaz de derrotar o otimismo de um santo. Heranças. Herdeiros. Você, leitor, sabe do que estou falando.

    Nos últimos tempos, tenho acompanhado a saga de uma amiga (progressista) que está estupefata com o comportamento dos pais e dos tios. Tudo por causa da herança dos avós.

    "O mais perturbante", diz ela, "é que o processo começou bem". Tradução: respeito pela memória do falecido; diálogo e harmonia; vontade de resolver o assunto com dignidade.

    Mas quando se desceu aos pormenores —quem fica com quê?, quem fica com quanto?— a coisa virou um filme de Sergio Leone. "É o faroeste. Temo até que eles se matem", suspira ela, enquanto eu leio o meu "Leviatã" com um sorriso nos lábios.

    O problema é que nada disso tinha de ser assim. Se o interesse próprio conduz os homens ao egoísmo e à violência (obrigado, sr. Rousseau), também pode funcionar em sentido inverso (obrigado, sr. Adam Smith).

    Aqui na Inglaterra, onde estarei nos próximos tempos, um caso trivial tem alimentado as notícias e ilustra bem a minha tese: falo do magnífico jardim de Sir Roy Strong, o antigo diretor da National Portrait Gallery e do Victoria and Albert Museum. Trata-se de uma proeza paisagística que ele e a mulher foram construindo e decorando durante décadas.

    Morta a mulher, Sir Roy entende que a hora dele não está muito distante. E, por via das dúvidas, resolveu fazer um testamento: o jardim será legado ao National Trust, instituição responsável pela preservação do patrimônio britânico, juntamente com um cheque generoso para ajudar na sua manutenção.

    Azar: o National Trust recusou a oferta por não ver grande valor no jardim do homem. E este, em declarações ao "Sunday Times", já encontrou forma de resolver o impasse: depois da sua morte, haverá indicações precisas para destruir o jardim.

    Os ingleses estão horrorizados com o vandalismo "post-mortem" de Sir Roy. Eu, pelo contrário, compreendo e abençoo o gesto. O respeito pela propriedade privada também inclui o respeito pela destruição dela.

    E, aqui entre nós, não seria louvável se a atitude de Roy Strong fizesse doutrina no direito sucessório?

    O processo seria simples: morto o proprietário, os herdeiros seriam convocados para as partilhas. Caso existisse conflito entre eles, a herança seria imediatamente destruída —ou, no mínimo, dissipada por instituições de caridade. Isso, e só isso, faria os herdeiros pensarem duas vezes antes de sacarem o revólver.

    Claro que a minha amiga discorda. E responde, com resignação e melancolia: "Do jeito que as coisas estão, o mais provável era eles aceitarem que ninguém ficaria com nada".

    Talvez, minha querida, talvez. Mas, curiosamente, esse pessimismo só reforça o meu. E, já agora, confirma a justiça cósmica da minha proposta para a paz mundial.

    joão pereira coutinho

    Escritor português, é doutor em ciência política.
    Escreve às terças e às sextas.

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