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    João Pereira Coutinho

    Diário de Oxford

    20/10/2014 15h19

    Em Oxford, sinto-me em casa. Não pela trilogia óbvia de livros, cabeças fecundas e Laphroaig. Mas pela quantidade de pessoas que, caminhando pelas ruas, têm o hábito saudável e belo de falarem sozinhas. Algumas sorriem, outras mostram esgares de preocupação.

    Mas ninguém repara, ninguém critica, ninguém se transforma em bovino a olhar para o palácio. Há o entendimento implícito de que um diálogo está em curso entre duas pessoas com os mesmos gostos, os mesmos interesses, as mesmas efabulações.

    Em Portugal, quando eu próprio me entrego ao exercício, há sempre um exército de dementes com o queixo caído e algum temor no olhar. Provavelmente, já devo ter provocado acidentes de viação durante uma das minhas composições.

    Porque é de composições que falamos: crônicas inteiras escritas mentalmente entre o Rossio e o Marquês de Pombal, que são depois vertidas em letra de forma quando chego ao meu escritório, ou seja, à minha cama.

    Não sei se existe uma associação de faladores solitários, disposta a combater o estigma de que somos vítimas. Se existe, ninguém me informou. E o mais provável é eu próprio criar uma só para mim.

    *

    Noite de pub com dois colegas. Um deles, que já superou os mínimos olímpicos (em Oxford, o mínimo olímpico começa nas seis cervejas), vai falando, vai parando, vai falando, vai parando —e eu apercebo-me que o ritmo não é marcado pela embriaguez. É uma pausa física para acautelar o vômito iminente, normalmente acompanhada por um engolir em seco.

    Dou um passo para trás, ele dá um passo em frente. Como na tourada à portuguesa, sou um forcado amador momentos antes de levar com a cornadura da animália.

    Não vale a pena continuar com a história gráfica deste confronto. Mas é surpreendente saber que, numa cidade tão absurdamente cara, a limpeza de uma camisa de algodão em estabelecimento certificado custa apenas duas míseras libras.

    *

    Que fazer às tatuagens depois da morte? Boa pergunta. Boa resposta: informa o "The Guardian" que a Foundation for the Art and Science of Tattooing tem uma solução. Consiste em remover as ditas cujas do cadáver por patologistas especializados, colocar a pele em formol, depois remover a gordura e a água —e finalmente conservar a tatuagem com silicone.

    Depois, será possível colocar a obra de arte em uma moldura e, imagino eu, informar as visitas que aquele desenho pendurado na sala de jantar era a bunda da avozinha.

    Não sei se as visitas comerão a sopa com o mesmo entusiasmo; não é fácil ter apetite com as nádegas da defunta sobre o prato.

    Mas, pelo menos, a memória da avozinha estará resguardada para as gerações futuras.

    *

    Falei do "The Guardian". Gosto de o ler. Todos os dias, antes do almoço, subo à "common room" do colégio e gemo. Através do jornal, entendemos que a Inglaterra tolerante e "liberal" vai desaparecendo irremediavelmente pelo cano. Três exemplos.

    Para começar, a prefeitura de Londres pondera proibir o fumo em parques e praças. Depois de bares, restaurantes ou recintos desportivos, nem o ar livre salvará os fumantes. Não seria preferível, de uma vez por todas, fuzilá-los?

    Mas extraordinário é ler as declarações de Simon Stevens, diretor do sistema nacional de saúde, que quer médicos e enfermeiros a praticar exercício físico. A obesidade é um problema sério no Reino Unido e a questão, agora, já não está nos pacientes. Também está nos médicos, que devem dar o "exemplo" e praticar "jogging" todos os dias antes de vestirem a bata.

    Se a coisa continua, suspeito que os gordos terão o mesmo destino dos fumantes. O gueto, primeiro; o fuzilamento, depois.

    Felizmente, a televisão britânica conserva uns laivos de lucidez: um relatório recente defende que velhos, mulheres, deficientes, lésbicas, gays, bissexuais e outras minorias estão sub-representados na telinha. Números?

    Aqui vão: quando as mulheres aparecem nas TVs, normalmente têm entre 20 e 39 anos. Acima dos 55 anos, é praticamente impossível encontrar esses espécimes em séries ou programas de entretenimento.

    Confrontado com estes números, duas perguntas vagueiam pelo meu espírito cansado. A primeira é saber que tipo de cabeças se dedicam a estes estudos e, mais ainda, se elas não estarão também sub-representadas na televisão do século 21. Eu gostaria de conhecer uma delas. Curiosidade zoológica.

    A segunda é imaginar uma série de TV que conseguisse cumprir todas as "cotas" (formais ou informais) que as patrulhas recomendam. Uma série com velhos, mulheres, deficientes, lésbicas, gays, bissexuais —mas também anões, travestis e, para dar um toque fantasista ao enredo, uma manada de unicórnios. Tudo lá dentro, como num quadro de Bosch. Quem não pagaria para assistir a essa novela?

    *

    Tempos atrás, um familiar próximo morreu no hospital em agonia. A médica de serviço tentava um tratamento qualquer, provavelmente inútil, e esqueceu-se da providencial morfina. Nada feito: nem salvação, nem serenidade. Só sofrimento —atroz e desnecessário.

    Os médicos de hoje, ou uma parte substancial deles, têm uma visão hiperbólica da sua própria missão: entendem que nunca devem desistir, mesmo perante a evidência de que a morte é inadiável. Razões?

    A mais simples: os médicos são humanos. E nada define tão bem a nossa condição moderna do que um medo absoluto da morte. "Deixar ir" —e, de preferência, "deixar ir sem sofrimento", eis um gesto nobre que não lhes entra na massa encefálica.

    É contra essa cultura que escreve Atul Gawande em "Being Mortal", um dos livros do momento aqui em Inglaterra. O dr. Gawande é cirurgião em Boston. E escreve um texto pessoal, pessoalíssimo, sobre a "obstinação terapêutica" (palavras de João Paulo 2º) que tomou conta da profissão.

    Essa "obstinação", em muitos casos, serve de pouco —e o paciente, que teria beneficiado de cuidados paliativos capazes de lhe dar algum conforto e "sentido do fim", é transformado em cobaia de mil tratamentos, como se a morte fosse uma derrota vexatória e inaceitável.

    Os doentes poderiam morrer em casa, rodeados pelos seus. Morrem em hospitais, com o corpo vandalizado por máquinas e tubagens, sem a dignidade de puderem olhar pela última vez para um rosto conhecido.

    Sou contra a eutanásia ativa. Sou contra o suicídio assistido. Entendo que a função de um médico é curar, não matar. Mas quando o primeiro imperativo encontra os seus limites, o verbo seguinte é apenas um: desistir.

    E, nesse gesto de humildade, permitir que o doente enfrente a dor existencial da morte sem a dor física do fim.

    *

    Comprei um celular inglês. No dia seguinte, comecei a sentir, digamos, algumas diferenças civilizacionais. Explico: no meu celular português, o despertador arrancava com uma musiquinha suave que convidava ainda ao sonho, à meditação e à preguiça.

    O despertador inglês, pelo contrário, estremece com violência e solta uma voz de governanta sisuda, com os dizeres: "It's time to get up!" ("É hora de levantar!"). E se insistimos no "snooze", a megera zanga-se.

    Para que o aparelho fosse perfeito, só faltava mesmo um balde de água gelada sobre a minha cabeça, como acontecia nos colégios vitorianos. Só para fortalecer a industriosidade e o carácter.

    Talvez em próximas versões.

    joão pereira coutinho

    Escritor português, é doutor em ciência política.
    Escreve às terças e às sextas.

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