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    João Pereira Coutinho

    Diário de Oxford - capítulo 2

    03/11/2014 02h00

    Que tristeza: cheguei à Inglaterra há três semanas e ainda não vi Stephen Gough por aí. Quem? Falo do Caminhante Nu, que percorre as ilhas britânicas de norte a sul e que já passou anos no presídio por causa disso.

    Agora, cansado das agruras policiais, Stephen levou o caso ao Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, que não se comoveu. Os juízes ordenaram decoro e vestes. O caminhante não se conforma. Em declarações aos jornalistas, lamenta que a cultura de excentricidade esteja a desaparecer na Inglaterra.

    Concordo com ele. E acrescento uma pergunta formulada em tempos por Theodore Dalrymple: se uma pessoa não pode andar despida nas ruas, por que motivo as autoridades permitem que alguns cidadãos andem cobertos da cabeça aos pés, como se a vida fosse uma festa de Halloween permanente?

    Para usar os argumentos do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem sobre o naturalismo de Stephen Gough, não serão as mulheres muçulmanas com véu integral um exemplo ofensivo para "as regras do comportamento público aceitável"? Uma sociedade civilizada talvez precise de compromissos entre sensibilidades distintas. É por isso que os trapos que faltam a Stephen Gough deveriam ser retirados a quem tem excesso deles.

    *

    Amigos portugueses, que velam dia e noite pela regularidade das minhas entranhas, perguntam com frequência: "E a comida por aí?" Para desilusão deles, respondo em rima: "Ainda não a vi."

    Verdade que há 14 anos, quando andei por cá a "pesquisar" (cof, cof), a serradura era boa para gado. Hoje, quando muito, servirá para alimentar um doméstico cão, ou um doméstico gato, isso se não tivermos pelo bicho nenhuma espécie de afecto humano.

    Mas nem tudo é mau: com uma irmã que vive a 500 metros do meu modesto quarto, apareço-lhe invariavelmente ao jantar, tísico e macilento, a mendigar uma malga de sopa ou umas réstias do refugado.

    Ela acolhe-me com tolerância bíblica e depois, como condição do meu sustento, introduz-me nos seculares prazeres de descascar batatas.

    Não me queixo. Se na guerra não se limpam armas, na fome não se ostentam ares.

    *

    Desde que descobri a genética, nunca mais quis outra coisa. Leio sobre, discuto sobre. Desculpo-me com.

    Vejamos os dentes: eles partem, eles apodrecem, eles sangram? Genética, digo eu. O meu trisavô, que Deus o tenha, perdeu a dentadura aos 18 anos e passou a vida inteira a sopas e sucos.

    O auditório abisma-se com essas mentiras e eu sofro com as verdades: todos os meses, a cadeira do dentista espera por mim. E eu marcho para ela com o ânimo de um condenado.

    É por isso que não deveria dar um pio sobre a intenção das escolas inglesas em ensinar as crianças a escovar os dentes duas vezes por dia. Para evitar cáries, infecções e outros desarranjos da placa.

    Uma representante dos pais, confrontada com a medida, pergunta no "Daily Telegraph": "O que vão sugerir a seguir? Que os pais despejem os filhos na escola, nus e sujos, para que o Estado os lava e vista?"

    Entendo o argumento. Mas, minha cara senhora, o melhor é não dar ideias. O Estado pode bem roubá-las e até há pais que agradeceriam o jeito.

    *

    E por falar em dentes: não é simplesmente notável que os nossos antepassados romanos tinham melhores dentaduras do que nós?

    Os jornais revelam a descoberta: depois de analisadas 300 caveiras da época, a periodontite era raríssima. Hoje, 30% da população mundial é atingida pela maleita e até pode engolir os próprios dentes enquanto come o jantar.

    As causas parecem estar no tabaco e nas doenças associadas. O que permite concluir que a melhor forma de manter a saúde oral é abandonar esse nojento vício e, já agora, abraçar a vida saudável que os romanos tinham. Como, por exemplo, participar em lutas de gladiadores ou ser lançado às feras para gáudio das massas.

    Claro que esses hábitos também tinham o seu preço: lembra o "The Times" que a longevidade da turma raramente passava dos 40 anos.

    Mas, em contrapartida, eram 40 anos sem halitose e com bocas celestiais.

    *

    Sim, já deu para entender: os ingleses adoram notícias sobre saúde. Não passa um dia em que os jornais não anunciem descobertas - ou alarmes - para entreter a curiosidade dos nativos. Notícias sobre saúde são os novos folhetins do século 21. Sherlock Holmes, hoje, seria um anatomopatologista.

    Agora, são os estorninhos (pequenos pássaros que abundam nas ilhas). Programa da BBC revela: eles estão em rápido declínio. Motivo? Medicação antidepressiva em humanos. Por ano, são 50 milhões de receitas. O que significa que nas águas de esgoto ficam resíduos dessa artificial felicidade, que normalmente provoca, como efeito adverso, uma certa preguiça na protuberância de baixo.

    As aves bebericam essas águas, talvez se sintam mais felizes, mas ante a diminuição da líbido não há como assegurar a reprodução da espécie. Como reverter isso?

    Ninguém quer uma nação de ingleses infelizes só por causa dos estorninhos. Mas o governo britânico, por cada caixa de Prozac, deveria oferecer aos pacientes uma de Viagra como brinde.

    Tenho a certeza que as aves, na hora de matar a sede, se recompunham depressa com esse engenhoso equilíbrio.

    *

    Está uma pessoa no sono dos justos quando dispara um som de catástrofe. A princípio, pensei que era eu próprio a ressonar (não seria a primeira vez). Mas concluo rapidamente que o colégio está em chamas e, como uma personagem da série "Seinfeld", desato a correr pelas escadas abaixo, atropelando mulheres e crianças, em busca de salvamento.

    Falso alarme: era apenas uma simulação. E eu, sob o frio inglês, em cuecas e tronco nu, pergunto a todos os santos por que motivo a sorte é tão madrasta.

    Os santos respondem-me: quando me lembro que, tomado pelo pânico, deixei as chaves do quarto dentro do quarto.

    *

    David Cameron foi atropelado por um "jogger" em plena rua de Londres. A Scotland Yard, responsável pela segurança de Cameron, não é poupada de críticas: e se fosse um terrorista? Como é possível que um anônimo se aproxime tão facilmente do primeiro-ministro do país?

    O homem em questão, estupefato com a polêmica, garante que estava apenas a correr e que não é culpado de nada. Enfim, um homem a praticar "jogging" é sempre culpado de alguma coisa. Mas esse não é o ponto.

    O ponto é que o encontro de Cameron com um "jogger" é um sinal de civilização. Significa que o primeiro-ministro ainda caminha pelas ruas sem excesso de gorilas, sem carros blindados, sem ruas cortadas - tudo ao contrário do Terceiro Mundo, onde qualquer déspota precisa de um exército para poder dar um passo.

    *

    Deu na rádio: será verdade que sexo com 20 ou mais mulheres reduz em 30% o risco de câncer da próstata? Se é verdade, prevejo grandes avanços. Não apenas para a medicina, mas para as relações humanas em geral.

    E imagino um homem, apanhado em pleno acto, explicando à respectiva senhora: "Querida, isso não é o que parece. É simples profilaxia."

    *

    Ida ao supermercado. Atrás de mim, duas estudantes da Universidade de Oxford conversam. Diz uma delas: "You can not drink and then write your essay. It's the other way around." ("Você não pode beber e depois escrever o seu ensaio. As coisas funcionam ao contrário.")

    Honestamente: não é o cúmulo da sofisticação?

    joão pereira coutinho

    Escritor português, é doutor em ciência política.
    Escreve às terças e às sextas.

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