• Colunistas

    Thursday, 16-May-2024 14:15:41 -03
    João Pereira Coutinho

    Os corpos do crime

    04/11/2014 02h00

    1. Que dizer do rosto da atriz Renée Zellweger?

    Explico ao leitor que passou férias na Lua: em noite de prêmios de Hollywood, Renée Zellweger apareceu no tapete vermelho. E o rosto não era o de Renée Zellweger. Tinha apenas uma vaga semelhança com o original, escondido sob golpes de bisturi e outras originalidades da cirurgia estética.

    O caso circulou pelo mundo e o mundo, pasmo e levemente ofendido, perguntou: como é possível destruir um rosto e comprar outro para exibição pública?

    Entendo a pergunta. Sobretudo quando falamos de uma atriz: destruir o rosto, ou seja, destruir a capacidade de o usar como matéria-prima de tensões e emoções, é um ato de vandalismo que desafia as leis da lógica.

    Mas as causas da mudança em Renée não são difíceis de compreender. Feministas várias, indignadas com a indignação geral, acusaram a tirania falocêntrica de Hollywood de submeter as mulheres à ditadura da "juventude eterna". O bisturi pode desafiar as leis da lógica, sim. Mas ele se explica pelas leis trabalhistas.

    Lamento, mas não mordo inteiramente. E prefiro olhar para a filmografia da senhora. Em 20 anos de carreira, que podemos dizer do caso Renée Zellweger?

    Simples: a atriz não tem um único filme que possamos considerar "decente" (para usar um eufemismo).

    E, nos filmes menos embaraçosos (como "Cold Mountain" ou "Cinderella Man"), o que espanta é a ausência de uma personalidade forte —uma "marca autoral", como se costuma dizer; ou como se costumava assistir nos filmes de Bette Davis, Audrey Hepburn ou Natalie Wood.

    As personagens de Renée Zellweger são baças, monocórdicas —em uma palavra, "desinteressantes".

    E se existe quem acredite que um ator interessante nem sempre nasce de uma pessoa interessante, eu discordo: terminei de ler a biografia de Laurence Olivier, escrita por Philip Ziegler, e o fascinante ator só é explicável pela fascinante pessoa que existia antes de entrar no palco. Só um ser humano completo (e complexo) vira um ator idem.

    Tudo isso para dizer o quê?

    Uma conclusão muito simples: quando você precisa mudar o exterior por capricho é porque não existe grande coisa no interior para começar.

    2. A revista americana "Men's Health" elegeu o soldado Noah Galloway como "o corpo mais perfeito do mundo". Pormenor: Noah Galloway não tem um braço e não tem uma perna. Mas isso não impediu a revista de fazer capa com o veterano de guerra e coroá-lo com semelhante epíteto adônico.

    Era George Orwell, creio, quem dizia que o mais difícil no mundo era enxergar a realidade que temos diante dos olhos. Orwell tinha razão. Porque Noah Galloway não tem "o corpo mais perfeito do mundo". Tem um corpo amputado, que só por covardia politicamente correta é possível classificar como "o mais perfeito do mundo".

    Covardia e, pior que isso, uma desavergonhada falta de respeito pela deficiência física.

    Ponto prévio: a deficiência física não tem nada de especial. É um fato moralmente neutro —como ser alto ou baixo, magro ou gordo, bonito ou feio.

    Mas não é um fato esteticamente neutro: o Corcunda de Notre Dame não está no mesmo patamar de Gisele Bündchen. E afirmar que um corpo sem um braço e uma perna é "o mais perfeito do mundo" soa tão ridículo como coroar Dilma Rousseff como a mulher mais bela do Brasil.

    O que parece "moderninho" e "despreconceituoso" resvala tristemente para o anedótico e para o insultuoso.

    E, ironia maior, demonstra um desconforto com a própria ideia de deficiência física que se procura "normalizar" desesperadamente (e pateticamente) com delírios hiperbólicos de sentido inverso.

    Porque esse é o problema eterno do pensamento politicamente correto: para proteger a "sensibilidade" das minorias, as brigadas preferem a falsificação constante da realidade. Essa falsificação é sempre mais ofensiva do que qualquer discriminação real.

    O pessoal da "Men's Health" deveria saber que há deficiências maiores do que não ter braços ou pernas. Não ter cabeça, por exemplo, é mil vezes pior.

    joão pereira coutinho

    Escritor português, é doutor em ciência política.
    Escreve às terças e às sextas.

    Fale com a Redação - leitor@grupofolha.com.br

    Problemas no aplicativo? - novasplataformas@grupofolha.com.br

    Publicidade

    Folha de S.Paulo 2024