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    João Pereira Coutinho

    Diário de Oxford - capítulo 3

    DE SÃO PAULO

    17/11/2014 03h00

    Oxford tem vários clubes para quem gosta de desporto. Mas há limites: 13 anos atrás, quando aqui estive pela primeira vez, os amantes do remo levantavam-se a horas obscenas e depois rapavam frio de morte na água e na neblina.

    Recusei a tentação e optei por outra modalidade fisicamente exigente, mas com horários mais apropriados. Inscrevi-me no Clube dos Provadores de Vinho e, quinzenalmente, na companhia dos meus confrades, havia sempre 8 garrafas (4 de vinho branco, 4 de vinho tinto) para serem provadas com os seus vagares.

    No final dessas sessões, já ninguém distinguia claramente um Merlot de um Pinot Noir, para desespero do mestre de cerimônias. Mas ficaram amizades.

    Ainda me lembro de um rapaz australiano que, em gesto operático, subiu a uma das mesas corridas do colégio, estilo Harry Potter, com a ambição heróica de saltitar entre elas.

    Talvez pela nacionalidade, ficou conhecido como "Canguru Jack" e a proeza serviu de aviso para os restantes: em Oxford, rebentar com os queixos é despesa grande e vergonha idem. Aparecer nas festas dos colégios com ferros no rosto não é propriamente o melhor cartão de visita. "Canguru Jack" ensina hoje na Suécia.

    Passaram 11 anos. Mas não passou a minha paixão pelo desporto. Estou de volta às provas de vinhos e descubro com orgulho que ainda sei duas ou três coisas sobre a matéria.

    Só pelo cheiro, identifico um Chardonnay (pela cor –dourada– e pelo odor –frutado). Ainda nos brancos, aqui vai um conselho ao leitor romântico: nenhuma mulher resiste a um bom Riesling (vai bem com saladas e é leve como elas).

    Nos tintos, nunca entendi a hostilidade do personagem Miles (Paul Giamatti) no filme "Sideways", quando gritava ao amigo: "I won't drink the fuck'n Merlot." Ele que me traga um Saint-Émilion e depois falamos.

    Não posso é garantir que falaremos com os queixos intactos. Mas, a partir de uma certa idade, as festas dos colégios perdem aos pontos quando comparadas com o sossego redentor de uma boa cama para as ressacas.

    *

    O insuportável Bob Geldof regressou ao mundo dos vivos com o Band Aid30. Em resumo, Geldof reuniu "celebridades" (grotesca categoria) para cantarem o tema "Do They Know It's Christmas Time".

    Trinta anos atrás, a canção pretendia matar a fome na Etiópia e a sanidade dos ocidentais. Agora, o objectivo é ajudar a combater o Ebola em África.

    Intenção nobre, sem dúvida, embora com os problemas clássicos que a "indústria da ajuda humanitária" se recusa a enfrentar. A jornalista Camilla Cavendish, no "Sunday Times", resume tudo com uma pergunta: como garantir que o dinheiro será usado em quem precisa - e não, como aconteceu na Etiópia em 1984, para fortalecer a ditadura criminosa de Mengistu?

    Sem responder a essa pergunta singela, não vale a pena gastar um tostão com o disco. Excepto para torturar vizinhos que gostam de torturar os outros com música sertaneja aos sábados de manhã.

    *

    Existem jogadores de casino que se auto-excluem do casino: cedem o nome e a foto ao porteiro e depois, quando o impulso os arrasta para lá, são barrados com prontidão.

    Penso nisso sempre que entro na livraria Blackwell. Nem que seja para perguntar qualquer coisa na maior das inocências.

    Hoje, quando lá fui para saber se havia ingressos para a palestra do sr. James Ellroy, reparei que não conseguia mexer os braços: entre a porta de entrada e o balcão das informações (20 metros, não mais), eu já tinha acumulado nos bíceps onze livros sem consciência do facto.

    Embaraçado, paguei os livros e depois resolvi fazer a primeira "selfie" da minha vida. Para deixar ao porteiro com o meu nome - e um pedido de ajuda.

    *

    O meu pai, professor de História, costumava dizer que é preciso fazer uma distinção basilar na vida: entre pessoas ignorantes e pessoas estúpidas. As primeiras podem ter salvação - com disciplina e estudo.

    Gente estúpida, porém, não tem salvação, dizia-me ele. Nenhuma ideia é capaz de furar aquelas cabeças, sobretudo se as cabeças já estiverem deformadas pelo "vírus da estupidez". Em relação a elas, sorrisos (sociais) e distância (física).

    Oh well. O meu pai faleceu há 11 anos e infelizmente não assistiu a algumas proezas da ciência. Sim, ele já falava do "vírus da estupidez". Mas ninguém calculava que a estupidez pudesse ser realmente infecciosa.

    Agora, cientistas americanos encontraram um ser microscópico (o ATCV-1) que, para além das algas marinhas, também pode ser encontrado em seres humanos. Mais: o referido vírus altera o funcionamento cerebral e diminui acentuadamente as capacidades cognitivas do sujeito.

    Uma pergunta, porém, fica por responder: se as algas infectam humanos, haverá hipótese de humanos infectarem humanos?

    Em caso afirmativo, mais uma vez se prova que o meu pai era um visionário: sorrisos (sociais) e distância (física).

    *

    Um jihadista britânico, Kabir Ahmed, envolveu-se em atentado terrorista contra a polícia iraquiana. Até aqui, nada de novo: quem não trabalha, não come, como diz o povo.

    Mas inquietantes são as declarações de Ahmed ao "Daily Telegraph". Diz ele que, em nome de Alá, até sacrificava os próprios filhos. "Nem que fosse 100 vezes."

    Arrepia? Claro que arrepia. Mas arrepia ainda mais assistir aos vídeos de pais de reféns ocidentais que imploram aos terroristas pela libertação de um filho. Exercício perfeitamente inútil. Se os selvagens não se comovem com os próprios filhos, como esperar que se comovam com os filhos dos outros?

    *

    Em matéria de saúde pública, todos os dias há alarmes. Leio nos jornais que um estranho bicho, tipo percevejo ou coisa do gênero, está a caminho de Inglaterra. O dito cujo já fez estragos em Itália ou Espanha.

    Brevemente estará nos sofás e nas camas dos ingleses a largar um cheiro nauseabundo.

    Entendo a preocupação dos nativos. Infelizmente, não a posso partilhar. E estranho apenas que a Sociedade Protectora dos Animais, sempre tão afoita a defender os direitos dos bichos, não tenha dito uma palavra a favor dos percevejos. Basta conhecer o estado higiênico dos sofás ou das camas inglesas para entender que, nesta história toda, a ameaça é a inversa.

    *

    Turistas que visitam Oxford reparam no fenômeno: os mendigos, aqui, são mais jovens do que a média. Explicações?

    A óbvia: Oxford é uma cidade universitária. Os mendigos que abundam pelas ruas são antigos alunos que, algures pelo caminho, se perderam no álcool ou nas drogas.

    Mas existe uma marca distintiva em todos eles que denuncia o berço de origem: ao mesmo tempo que mendigam, têm sempre um livro como companhia. Como se o livro fosse a última ligação a uma vida não vivida.

    *

    Dizem-me que os médicos ingleses terão um bônus de 55 libras (mínimo) por cada diagnóstico de demência. Um ultraje deontológico?

    Tudo depende do que entendemos por demência. Na minha família, por exemplo, a palavra sempre foi usada com uma certa liberalidade. "Demente" é alguém que simplesmente não regula da cabeça.

    O caso era tão natural que a minha irmã, neurologista, por vezes tinha situações caricatas com colegas de profissão. Dizia que alguém era "demente" e os pares começavam logo a discutir causas e diagnósticos com afinco.

    Talvez esteja aqui uma chave para que o caso inglês não se transforme na vergonha ética que alguns profissionais já vieram alardear. Fácil: basta alargar a palavra "demência" no seu alcance e significado.
    Os médicos ganhavam mais e, bem vistas as coisas, todos nós somos um pouco dementes.

    joão pereira coutinho

    Escritor português, é doutor em ciência política.
    Escreve às terças e às sextas.

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