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    João Pereira Coutinho

    Os vilões do filme

    DE SÃO PAULO

    23/12/2014 02h00

    Li em tempos que Kim Jong-un, o famoso ditador da Coreia do Norte, tinha um gosto pantagruélico por "westerns" norte-americanos. Aliás, não apenas por "westerns": John Ford ocupava um lugar especial no panteão do demente.

    O amor de Kim era tão intenso pelo cinema clássico americano que, nas horas vagas, quando não estava a matar a família para proteger o seu poder, essa última relíquia stalinista era o crítico de cinema oficial no jornal oficial de Pyongyang.

    Quando soube da paixão de Kim Jong-un por Ford (sim, também é o meu diretor favorito), confesso que senti uma certa simpatia. Ah, se o homem não fosse um psicopata, com o corte de cabelo mais ridículo do mundo e uma estranha obsessão com brinquedos nucleares, talvez isso fosse o início de uma bela amizade.

    Mas o gosto de Kim por John Ford talvez ajude a explicar a grande polêmica do momento.

    Segundo se sabe, os estúdios da Sony foram alvo de ciberataques. Tudo porque a empresa, prolongando o seu gosto por comédias débeis, produzidas por débeis e consumidas por débeis, tencionava lançar o filme "A Entrevista". No referido filme, Kim Jong-un era assassinado no final.

    Os terroristas cibernéticos ameaçaram retaliar com dureza se o filme fosse para as salas. A Sony, em gesto de grande coragem, decidiu jogar o filme no lixo.

    Barack Obama está "consternado". E acusa a Coreia do Norte de exercer censura sobre Hollywood. A Coreia do Norte responde: propõe um inquérito conjunto ao incidente e pede que as acusações de Obama sejam retiradas, caso contrário haverá "sérias consequências". Não é de excluir que Kim Jong-un mude radicalmente de penteado.

    Não pretendo perturbar as relações tensas entre Washington e Pyongyang. Mas pergunto, com humildade cristã, se Kim e os seus pigmeus não terão feito um favor à sétima arte.

    Pelas críticas que li ao filme, "A Entrevista" prometia ser atroz. E qualquer cinéfilo respeitável não pode deixar de pensar o que teria sido do cinema americano se, nos últimos anos, Kim Jong-un tivesse exercido preventivamente a sua função de crítico sobre filmes como "American Pie", "Todo Mundo em Pânico" ou "Sex and the City". O cinema americano teria saído a ganhar.

    Sem falar do óbvio: Kim talvez considere um desrespeito que a sua Coreia do Norte seja tratada em tom de comédia. Tem inteira razão. Um regime comunista que aprisiona, tortura e mata o seu povo como nos melhores tempos da União Soviética ou da Alemanha nazista não é assunto para rir.

    Finalmente, o argumento favorito dos paladinos da liberdade de expressão, plasmado com seriedade pelo insuspeito "The Guardian": o Ocidente não pode vergar-se aos caprichos de um tirano da mesma forma que não se vergou quando Salman Rushdie foi condenado à morte pelo aiatolá Khomeini depois da publicação de "Os Versos Satânicos".

    Lamento, mas essa indignação já vem tarde: em 1989, o Ocidente não foi unânime na defesa de Rushdie. Que me lembre, e só de memória, escritores como Roald Dahl ou John Le Carré (imediatamente expulsos da minha biblioteca para sempre) até "compreenderam" a "fatwa" do aiatolá. Deu no que deu.

    Exatamente como a Sony "compreendeu" a "fatwa" dos terroristas, cancelando o filme e concedendo uma vitória para eles.

    Se pensarmos bem, não é Kim Jong-un quem censura ou ameaça. Ele não é, metaforicamente falando, o vilão deste filme.

    Os verdadeiros vilões somos nós, ocidentais, que nos censuramos e silenciamos voluntariamente.

    De igual forma, não é Kim Jong-un quem desrespeita a liberdade de expressão. Somos nós, ocidentais, que fazemos dela uma paródia, suspendendo princípios que deveriam ser sagrados em democracias pluralistas.

    Uma cultura saudável, perante a ameaça de terroristas cibernéticos ou do inconfundível Kim Jong-un, avançaria com o filme na mesma –de preferência, com uma grande festa de lançamento– e aconselharia o ditador da Coreia do Norte a mudar de barbeiro. Ou de psiquiatra.

    Pateticamente, Hollywood ajoelha-se perante um tirano e depois Barack Obama promete "investigar" o sucedido.

    Eis uma tragédia que nem John Ford seria capaz de retratar.

    joão pereira coutinho

    Escritor português, é doutor em ciência política.
    Escreve às terças e às sextas.

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