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    João Pereira Coutinho

    Vidas de sucesso

    DE SÃO PAULO

    20/01/2015 02h00

    Uma amiga trabalhou há uns anos em programa televisivo para revelar novos talentos. As histórias que ela conta são hilariantes –e arrepiantes.

    Para começar, existe o número obsceno de candidatos —centenas, milhares— que vêm do país inteiro para conseguir os clássicos 15 minutos (ou serão 15 segundos?) de fama.

    Com eles, vêm as mães —sim, normalmente são as mães que acompanham as crianças e esperam que o sucesso dos filhos possa ser uma compensação pelo sucesso que elas não tiveram. Para o espírito do tempo, o sucesso é a suprema felicidade. O anonimato, o insuportável anonimato, a marca vergonhosa da infâmia.

    Quando escutei as histórias da minha amiga, provavelmente encolhi os ombros com compaixão. Mas hoje, para candidatos ao estrelato e respectivos progenitores, posso aconselhar um documentário que ganhou o Oscar em 2013 e que só agora me chegou às mãos?

    Intitula-se "Procurando Sugar Man", foi dirigido pelo sueco Malik Bendjelloul e consiste na busca do desaparecido compositor e cantor Sixto Rodriguez.

    Sim, o nome não surge no radar dos leigos. Mas em inícios da década de 1970, Rodriguez era considerado pelos entendidos como uma promessa comparável a Bob Dylan –pela sonoridade dos temas e, sobretudo, pela qualidade poética das letras.

    Esse talento levou-o a trabalhar com os melhores produtores musicais, como Clarence Avant, um nome experiente na indústria fonográfica que teve Michael Jackson e Stevie Wonder no seu "portfólio".

    Em 1970, Rodriguez lançou "Cold Fact". Em 1971, veio o segundo: "Coming from Reality". Em 1972, não veio mais nenhum. O sucesso crítico não teve parelha com o comercial. Rodriguez desapareceu do mundo dos vivos e as lendas urbanas começaram a falar de mortes.

    Uns diziam que Rodriguez se suicidara em palco, torturado pela falta de sucesso. Outros, ainda mais dramáticos, contavam cenários de horror, com o homem a regar-se em gasolina e a morrer queimado na cela de um presídio. A verdade mais verdadeira é que ninguém soube mais dele.

    Ninguém, vírgula: na África do Sul em pleno "apartheid", os discos de Rodriguez começaram a ter o sucesso que ele não teve nos Estados Unidos. Talvez as suas letras "anti-establishment" tenham animado os opositores daquele sistema iníquo.

    O que se sabe é que Rodriguez vendeu por lá centenas de milhares de discos. E, com o sucesso, a pergunta: mas quem é Rodriguez? E qual foi o seu destino?

    Essas perguntas animaram dois sul-africanos a procurar as respostas. O documentário é a história dessa procura –por Londres, Amsterdã, Nova York. E é também –atenção, "spoiler" à vista– a revelação última sobre o mito: Rodriguez estava vivo, trabalhava em Detroit (como operário da indústria da construção) e vivia modestamente com as três filhas.

    Quando finalmente o vemos, não encontramos um homem amargo que prometia tanto e, entretanto, se perdeu. Encontramos um homem sereno, dir-se-ia até feliz, envolvido nos assuntos da comunidade e sem a mais vaga sombra de vedetismo.

    E quando os jornalistas, incrédulos, lhe comunicam que ele era "mais importante que Elvis" na África do Sul, Rodriguez devolve a incredulidade. Nunca lhe chegaram notícias a respeito. Nunca lhe chegou, aliás, um centavo que fosse.

    Pois bem: organizaram-se turnês pelo país. Rodriguez foi (com as filhas), tocou os seus clássicos para plateias em delírio (músicas como "I Wonder" ou "Sugar Man") e depois regressou para casa. Hoje, graças ao documentário, há alguns shows na agenda do operário. Londres, por exemplo, prepara-se para recebê-lo no dia 7 de maio. No Royal Albert Hall.

    Existe lição nesta saga brilhante? Existe: a felicidade, ao contrário do que pensam os desesperados, não depende do "sucesso" ou da "fama" –sempre incertos por definição.

    Depende de uma capacidade maior para triunfar, falhar –e, apesar de tudo, seguir em frente com o resto da vida que temos. Porque a vida não se resume ao clamor dos aplausos que chegam –ou não chegam.

    Só mais uma coisa: Malik Bendjelloul, o diretor do documentário, ganhou com esta obra todos os prêmios de cinema imagináveis. Em 2014, decidiu pôr termo à vida. Tinha 36 anos.

    joão pereira coutinho

    Escritor português, é doutor em ciência política.
    Escreve às terças e às sextas.

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