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    João Pereira Coutinho

    Mostrar o pau

    09/03/2015 03h00

    A primeira vez que vi semelhante OVNI, parei no meio da calçada e fiquei a analisar o objeto: uma espécie de bastão, com um smartphone na extremidade –e alguém, segurando o bastão, a sorrir para o smartphone.

    Amedrontado com o extraterrestre, perguntei o que era aquilo. Fui informado: se as "selfies" conquistaram o mundo, era preciso inventar um mecanismo qualquer que facilitasse o processo –e melhorasse a qualidade das fotos. O bastão de selfie era a resposta.

    O caso é assustador –mas interessante. Antigamente, quando um casal visitava uma cidade e pretendia uma foto conjunta, a solução era simples: pedir a alguém para fazer a gentileza.

    O gesto era "social", comunitário, gregário. E, depois da foto, era possível agradecer a gentileza e, quem sabe, perguntar por um bom restaurante, um museu, um monumento. Qualquer coisa capaz de sustentar uma conversa com os nativos.

    Esses expedientes acabaram porque tinham de acabar: na era do narcisismo, o "selfie" começou por preencher a sua cota de mercado. Mas, como normalmente acontece, o narcisista não se basta a si próprio.

    Ele precisa da atenção do mundo –e o "pau" de selfie, como se diz no Brasil, é a melhor forma de conquistar uma audiência. Aliás, a expressão "pau de selfie", até por sua conotação fálica, é a mais apropriada: usar o "pau" no meio da rua faz lembrar aqueles tarados que gostam de abrir o casaco para mostrarem as intimidades em público.

    Em rigor, o narcisista não está apenas interessado na sua própria figura –depois de centenas, milhares, milhões de fotos, qualquer um morre de tédio. Ele pretende mais: montar um pequeno palco pessoal, onde é possível ser modelo –e ter o mundo em volta como auditório.

    Para tudo ser perfeito, só faltava mesmo o som dos aplausos. Uma questão de tempo, acredito, porque a tecnologia não dorme.

    Não admira por isso que alguns museus, a começar pelo Louvre de Paris, tencionem proibir o uso do "pau". Porque ele é incômodo para os restantes visitantes? Não duvido.

    Mas a razão mais profunda talvez seja outra: por melhor que seja o sorriso de Mona Lisa, ele não consegue competir com os sorrisos idiotas dos turistas que visitam museus para serem eles as obras-primas principais.

    joão pereira coutinho

    Escritor português, é doutor em ciência política.
    Escreve às terças e às sextas.

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