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    João Pereira Coutinho

    O testículo de Andreas Lubitz

    06/04/2015 09h30

    Tenho amigos que viveram, ou vivem, depressões. Talvez seja insensibilidade minha. Mas a condição deles nunca me preocupou grandemente.

    Digo mais: olho para a depressão de uma forma tão completamente orgânica que, na minha cabeça igualmente problemática, o caso é explicado - corrijo: será um dia explicado por desarranjos químicos perfeitamente comparáveis ao déficit de insulina que provoca a diabetes.

    Bem sei, bem sei: fatores ambientais são importantes. E, opinião pessoal, podem ser determinantes para que a massa cinzenta comece a funcionar do avesso.

    Mas, no fim das contas, o que temos é uma cabeça que funciona do avesso. Seja com terapia ou medicação, não vale a pena transformar um desarranjo mental em manifestação satânica ou sobrenatural. As coisas são como são: sujar o que já vem sujo com preconceitos ou imbecilidades nunca foi um bom método de limpeza.

    Infelizmente, o mundo optou por versões satânicas na história do copiloto da Germanwings que matou 149 passageiros ao destruir o avião nos Alpes.

    Explicação dos simples: Andreas Lubitz estava dominado pelos espíritos da depressão. E uma criatura dominada por tais espíritos não pensa apenas em matar-se; também deseja levar o mundo inteiro para a cova.

    Esse "raciocínio" não é apenas analfabeto sobre a doença e um insulto desnecessário a quem convive com o "cão negro". Começa por ser um pensamento ilógico, que no limite explicaria chacinas em massa, todos os dias, nos quatro cantos do globo.

    Segundo a Organização Mundial de Saúde, existirão 350 milhões de depressivos no mundo. Acreditar que a depressão transforma qualquer um em assassino de massas seria um cenário próximo do apocalipse.

    Mas culpar a depressão pela barbárie de Andreas Lubitz não é apenas fruto da ignorância. É também uma forma de encontrar uma explicação racional para o mais irracional dos atos. Se o crime do copiloto tiver uma explicação médica, então o mundo não terá que lidar com outras questões incomparavelmente mais sombrias.

    E a primeira delas é a velha questão do Mal, que os homens modernos foram "medicalizando" na tentativa desesperava de a domar ou abolir. No fundo, não existem criminosos; o que existe são problemas neurológicos de complexidade variável que transformam o mais inocente dos seres num psicopata letal.

    Tristes ilusões. Nas últimas semanas, ao ler sobre o copiloto, a doença dele foi adquirindo aos meus olhos um estatuto quase marginal. Sim, estaria deprimido - como milhões de outros alemães. E daí?

    O quadro biográfico geral aponta, isso sim, para uma criatura manipuladora, narcísica, com traços de megalomania e uma capacidade nula para suportar a frustração - o perfeito monstrinho que, no lugar certo e na hora certa, é uma arma de destruição maciça.

    Explicar o crime de Lubitz com a depressão de que ele sofria tem a mesma validade científica que explicar os crimes do nazismo com o testículo que faltava ao líder da seita. Pura invenção. E pura pornografia.

    joão pereira coutinho

    Escritor português, é doutor em ciência política.
    Escreve às terças e às sextas.

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