• Colunistas

    Tuesday, 07-May-2024 13:13:18 -03
    João Pereira Coutinho

    Protestos de Primeiro Mundo

    14/04/2015 02h00

    Brasileiros nas ruas, protestando contra o governo —e eu, ao telefone, como um jornalista profissional, procurando saber de amigos por que motivo protestam os brasileiros.

    Deixo ficar os paranoicos para próxima oportunidade: gente que me diz que a) Dilma quer transformar o Brasil em ditadura ou b) as manifestações são manobras da oposição com apoio internacional (tradução: os Estados Unidos da América, claro). Ficarei apenas por gente que vive fora de um asilo psiquiátrico, com acesso regular a cuidados de saúde e alguma sensibilidade política para o fenômeno.

    E então escuto os motivos do descontentamento geral. Na enquete realizada pelo Instituto Datacoutinho, uma larga maioria fala de corrupção endêmica como causa primeira da trepidação popular.

    Depois, em porcentagens cada vez mais reduzidas, vem "o estado da economia", categoria geral que inclui –por ordem decrescente– a inflação elevada, o crescimento medíocre, o custo de vida, a falta de investimento e o excesso de burocracia. Em penúltimo lugar, a saúde pública e o ensino. Em último, e quase por sugestão minha, as "desigualdades sociais".

    Curioso: se eu recuasse no tempo –uns dez ou 20 anos– e realizasse a mesma enquete, tenho certeza de que as "desigualdades sociais" estariam no primeiro lugar da hierarquia. Exagero?

    Não creio. Steven Quartz e Anette Asp escreveram um texto para o jornal "The New York Times" que merece leitura atenta para entender um dos fenômenos mais interessantes dos países afluentes ("Unequal, Yet Happy").

    Ponto prévio: os autores falam dos Estados Unidos e, admito, estender as conclusões deles para o Brasil talvez seja abuso meu. Mas arrisco na mesma: os Estados Unidos continuam a ser uma economia de grandes desigualdades.

    Porém, acrescentam os autores, as reações extremadas e violentas contra as desigualdades que podíamos ver no passado praticamente desapareceram da paisagem. Como explicar o fenômeno?

    Os autores avançam com duas explicações complementares que eu subscrevo sem hesitar: a partir do momento em que as necessidades básicas da população estão garantidas (o que não acontecia em inícios do século 20), uma sociedade consumista tende a "diluir" a intolerância face à desigualdade.

    Explico melhor: quando a pobreza sofre redução extrema e a classe média se alarga, alargam-se igualmente estilos de vida plurais e alternativos onde o tamanho da casa do vizinho deixa de ser ofensivo aos olhos do nosso modesto apartamento.

    Melhor: a ostentação material, típica do subdesenvolvimento, ganha contornos quase "kitsch", o supremo pecado de uma cultura que deseja ser "cool". Às vezes, ter uma BMW não tem o mesmo apelo que usar uma bicicleta: pedalar o bicho é uma forma de mostrar preocupações "ambientais" e, sobretudo, um desprezo pelo reles materialismo que, ironicamente, só é possível pela satisfação das necessidades que o reles materialismo consegue.

    Claro que, para um conhecedor de história das ideias políticas, nada disso constitui novidade. O motor da história pode ser, como diziam Marx e Engels, a eterna luta de classes entre opressores e oprimidos (não é, mas isso são outros quinhentos).

    O problema é que o marxismo falhou, e falhou brutalmente, não apenas ao ser aplicado em países rurais e analfabetos como a Rússia de 1917 (um crime que Lênin cometeu sobre Marx); muito menos pelo longo cortejo de cadáveres que deixou no seu rastro.

    Para a conversa que nos interessa, o marxismo falhou porque, ao contrário do que Marx imaginava (e Lênin temia), os "oprimidos" não desejavam derrubar os "opressores". Desejavam antes ser como eles –nos gostos, nas posses, nos lazeres e nos prazeres. Para que destruir o capitalismo quando só o capitalismo garante um pouco de animação para todos?

    Os brasileiros protestam. Mas protestam num país onde a pobreza começou a ser vencida por Fernando Henrique Cardoso e onde a classe média praticamente explodiu nos últimos dez anos.

    Hoje, os brasileiros querem transparência política; economia saudável; diminuição de um Estado perdulário; saúde e ensino de qualidade, e etc. etc. Enfim, um caderno de exigências que poderia ser assinado por qualquer democracia consolidada.

    Pode ser uma triste consolação. Mas os protestos brasileiros já são protestos de Primeiro Mundo.

    joão pereira coutinho

    Escritor português, é doutor em ciência política.
    Escreve às terças e às sextas.

    Fale com a Redação - leitor@grupofolha.com.br

    Problemas no aplicativo? - novasplataformas@grupofolha.com.br

    Publicidade

    Folha de S.Paulo 2024